Escola de Verão para Atores | O Diário de Bordo [22.07 a 02.08]


Capítulo #1 | A Receção [22.07.19]

"Ah, for the pen of Balzac. For three days all these people, these total strangers, meet in a single train whose engine controls their destiny". Estas foram algumas das palavras que, na versão cinematográfica de 1974, Bianchi, o diretor de linha n'O Crime do Expresso do Oriente, dirigiu suspirante a Poirot, enquanto ambos se acomodavam à table de déjeuner do luxuoso comboio Paris-Constantinopla. As palavras foram ressoando acutilantes na minha imaginação à medida que Adriel Filipe, responsável pela Produção Executiva do Teatro do Noroeste, me recebia expansivamente no Centro Social e Paroquial de Santa Maria Maior, em Viana do Castelo; minutos antes, a alguns ziguezagues de estrada à distância, havíamos reunido no café contíguo ao Teatro Sá de Miranda, com a responsável pela área «Públicos e Comunicação», Ana Reguengo, para as esperadas boas-vindas.

Em simpática cavaqueira, avancei da porta para a escadaria, e da escadaria para os longos e sombrios corredores de pedra, de certo ao rubro da mesma excitação que Catherine Morland terá sentido ao adentrar Northanger Abbey nos centafolhos volumes de Jane Austen. Mas era Bianchi quem falava ainda ao meu ouvido. Evidentemente que não se tratam de uns meros "three days"; antes "twelve [long] days". Igualmente evidente é o facto de ninguém aqui estar encarrilhado/a à mercê de um motor de comboio: estamos sim, no recesso de uma residência artística, no recesso de uma Escola de Verão Para Atores, organizada pelo Teatro do Noroeste, em Viana do Castelo.

Fora a pequenez do detalhe diferenciador, a comunalidade da história mantêm-se inspiradora; é aqui, num modesto quartinho desta poderosa IPSS (que hoje mantém atividade protocolada com o Instituto Politécnico de Viana do Castelo para o acolhimento e residência de estudantes do Programa ERASMUS), que volto a maravilhar-me com o susto da convivência com o Outro. Já acomodado ao novo território, o cansaço das pernas estiro-o displicentemente pelos lençóis finos pontuados pela inscrição «Sé»; enquanto teclo os primeiros registos desta aventura de conhecimento artístico, oiço pelo corredor a voz dos últimos "total strangers" a chegarem: esses/as que, como eu, foram trazidos a esta mesma casa, para um mesmo comum propósito. A sessão inaugural decorrerá amanhã, às 10H, no Teatro Municipal Sá de Miranda. Penso nos/as meus/minhas clientes, e não sem um frio de medo, revejo criticamente a decisão de arriscar esta experiência.


Na descrição do projeto «Arte CresSendo», como qualquer manifesto militante de uma mais eficiente individuação, escrevi que "[n]em sempre (...) o processo de conjugação das duas áreas se mostrou pacífico; com efeito, durante muito tempo, Arte e Ciência foram percebidas como antagónicas e inconciliáveis; só com os anos se viriam a completar no ofício de esclarecer, estruturar, solidificar e promover o meu próprio sentido de missão na vida. Hoje, olhando em retrospectiva, sei que me não sintonizaria na frequência da continuidade histórica a que digo pertencer se arte e a psicologia me não tivessem educado a experiência do existir numa determinada lógica de compreensão e acção sobre mim, sobre os outros e sobre a própria vida, me não tivessem disposto o sentido dos meus passos na esteira deste esforço de auto-atualização".

Entre as paredes deste santo lugar, as linhas do manifesto escorrem-me pelos dedos como contas de um rosário contra os argumentos do medo. Nada há pois a temer: não verdadeiramente. Ainda que este território seja ignoto, ainda que esteja a transcender a minha zona de conforto - ou então, por isso mesmo. É este avanço - a teste - na minha zona de desenvolvimento proximal que mais fundo me anima a prosseguir, porque também pelos/as meus/minhas clientes, ao serviço de uma expansão mais compreensiva dos meus próprios plurais interiores. Vinte minutos para a meia-noite em Viana do Castelo. Com a omnipresença do breu, o medo caminha por esta improvisada Northanger Abbey de futuros insondáveis. Mas o medo, como digo em sessão aos/às clientes, é a energia por detrás do nosso melhor esforço. E que psicólogo seria eu, findas contas, pregando sem praticá-lo, eternamente acomodado ao recôncavo confortável da minha poltrona na CresSendo? Nova corrida, nova viagem. Agora que o comboio já arrancou, amanhã poderei começar a desvendar estes/as estranhos/as, e afinar as coordenadas do meu caminho. Se o meu sangue não me engana, algo de bom daqui sairá.

Capítulo #2 | Do Cabaret para o Convento [23.07.19]

Não conhecia do professorado mais do que a breve informação biográfica que, numa adequada brochura de boas-vindas, a Escola nos havia entregue à chegada. Agora habituado ao horário e programa pré-estabelecidos, vejo já dissolver-se o choque que inicialmente comportou acordar cedo para estar em palco às 10H30, como intróito a horas seguidas de ininterrupto esforço oficinal e reflexivo, compassando privilegiadamente o trabalho de extraordinários profissionais como Guillermo Heras (o encenador), Carlos Avilez (responsável pela Aula Magistral), Isabel Barros (responsável pela aula de Movimento), Constança Carvalho Homem (responsável pela aula de Textualidade) e João Henriques (responsável pela aula de Oralidade).

Nesta 5ª. Edição, a Escola decidiu-se consagrada ao tema «O Poético Feminino». «Nolens Volens» e «Sonhar com Ladrões», dois dos meus mais recentes trabalhos artísticos, traziam ressonâncias do tema, o que muito me animou a prosseguir com a candidatura: e, felizmente, não me enganaria nisso. Sob a abada dessa sugestão primeva, foi-nos chegada como musa, a obra de três grandes e muitos distintas poetisas: Sor Juana Inés de la Cruz – a última dos grandes escritores do Século de Ouro, poetisa da escola barroca, dramaturga, filósofa e freira nova-espanhola; Sophia de Mello Breyner Andresen e (a minha adorada) Sylvia Plath, a que Guillermo acrescentou ainda Pina Bausch – coreógrafa, dançarina, pedagoga de dança e diretora de ballet, conhecida principalmente por contar histórias enquanto dançava, e basear as suas coreografias nas experiências de vida dos/as bailarinos/as com quem trabalhava –, uma das suas mais estimadas referências.


Talvez mais do que ‘aprender a representar’ – coisa verdadeiramente impraticável, atendendo à abreviada duração da experiência formativa da Escola – grande era o meu interesse, e grande a motivação, em/para ‘pensar o teatro’. A possibilidade de conversar frente a frente com Carlos Avilez – Comenda da Ordem do Infante D. Henrique, Medalhas de Honra e Mérito Municipal da Câmara Municipal de Cascais, de Mérito Cultural da Secretaria de Estado da Cultura e da Associação 25 de Abril, Medalha de Mérito Cultural da Vila de Óbidos, Prémio António Pinheiro, do SNI, Prémio de Imprensa, pela encenação de D. Quixote, prémios da crítica e de vários órgãos de comunicação social, como Se7e, Nova Gente e Globos de Ouro, Prémio da Crítica 2015, Prémio Carreira e Obra da Sociedade Portuguesa de Autores – foi, até à data, das surpresas mais especiais da Escola. Menos pelo repertório de conquistas em display, e mais pelo que teve de humano interlocutor, devo a Carlos Avilez o robustecimento de um dos meus principais interesses nesta Escola de Verão. Palavras que disse por detrás de um cómico constante sorriso irónico recordaram-me da minha formação com João Negreiros, o também premiado dramaturgo do Grupo de Teatro da Universidade do Minho, quando – em 2008 – este nos incentivou a adotar como autoinstrução, a ideia de que “ninguém pode fazer (o ato dramático) melhor do que o próprio, pois é só o próprio que o vai fazer”.

Pessoalmente, viera a Viana no furor de uma certa reivindicação identitária para que à minha atividade como psicólogo clínico e da saúde a não espartilhasse nenhuma estereotipia passível de esgotar-me num único rótulo, sobretudo à luz de todo um outro plural de atividades com as quais também me identifico. Questionei-o, pois, sobre o que realmente define o status de profissionalização de um ator/atriz. O seu preâmbulo – à semelhança do discurso que de forma mais ou menos geral, entre professores e colegas, aqui flui sobre o tema –, resvalou para a ênfase do carácter misterioso deste “ensinar a viver” que é o papel de ator. Os atores, ou são loucos ou misteriosos. Não deixo nunca de suspeitar que uma certa lassidão mental, antitética aos rigores preciosistas, é pelo menos metade do mecanismo inteletivo que deixa o discurso entregue à inexatidão – e como não me entendo noutra exigência, fui persistindo na interrogativa. Pouco a pouco, senti que a resposta tomava formas mais esclarecedoras e portanto mais satisfatórias: a profissionalização está, no seu entender, ligada a todo um código de regras de disponibilidade que asseguram a coerência de uma atuação pessoal autónoma, casando isto com a noção de fidelidade a certos princípios que enformam a de identidade. Explicando, um/a ator/atriz deve estar disponível – deve ser disponível – para aceitar o desafio da criação: como metáfora de sonho e carne, símbolo de união entre o mundo do pensamento e o da forma, o/a ator/atriz deve comprometer-se firmemente com o fazer acontecer. A profissionalização nasce desta coerência que é – perdoe-se a apropriação – reflexo da própria individuação psicológica no domínio representativo. Como na tourada, não há senão que ceder ao imperativo de uma imersão no desafio; dizia Carlos Avilez, “o toureiro quer fugir do touro, mas não pode”.

Em breve, a longa mesa de debate traçada ao cumprido do palco, foi ganhando confortos de sala-de-estar. Alguém lhe perguntou por Sophia de Mello Breyner Andresen, dada a convivência que, momentos antes, confidenciara ter mantido com a escritora. Para lá dos expectáveis encómios, descreveu-a como fria e conservadora, ilustrando várias das áreas ocupacionais e papéis da sua vida, nomeadamente o de mãe e o de figura política; o desafio estava agora a saque: não consegui contê-lo – tinha de saber: “A sua companhia era agradável?”. A negativa de Avilez foi imediata. No instante seguinte, um sorriso trêfego ergueu-lhe os lábios: "Mas estar com a Natália era já o oposto", fazendo com que uma gargalhada geral sacudisse o grupo em trepidações de gozo. Revolteamos em torno das duas, Andresen tratando Correia por «aquela mulher», e Correia tratando Andresen por «aquela senhora». A partilha das suas anedotas foi absolutamente entusiasmante, nomeadamente a de que outrora os atores eram proibidos nas igrejas: “fechem as pratas que vêm aí os atores”, ouvia-se dizer. Os atores eram loucos ou misteriosos, ou então muito suspeitos.

Questionei-o sobre o que entendia por isso de ‘o poético feminino’; a sua partilha foi impressionante, ainda que não pelo melhor dos motivos: a mãe – contou-nos de sorriso manso no olhar hialino –, morreu-lhe ao dá-lo à luz: com o tempo, viria a aceitar-se como acidental assassino da progenitora, fazendo as pazes com a precoce tragédia sofrida, mas nunca se viu propriamente solto na exploração do feminino. Partindo da sua asserção de que a segurança é um dos critérios básicos para uma boa educação dramática, quis saber como geria – enquanto encenador – o limbo a que o/a ator/atriz muitas vezes chega quando sabe que deve despir a sua pessoa até à máxima nudez, mas evitar o perigo de anular as necessárias defesas de confronto com a realidade. O convite à exploração do próprio processo de individuação foi apresentado como chave principal para uma gestão eficaz desta delicadeza funcional.

Não creio que se possa evoluir no teatro, quando o teatro é esta operação dialógica, de contacto com distintos elementos do espetáculo (desde o encenador, aos técnicos de iluminação e aos figurinistas), sem adotar de mim para comigo mesmo, e nesse espaço de diálogo com o Outro, uma estratégia assente na noção de zona de desenvolvimento proximal. Trata-se de um conceito elaborado por Vigotsky, e define a distância entre o nível de desenvolvimento real, determinado pela capacidade de resolver um problema sem ajuda e o nível de desenvolvimento potencial determinado através da resolução de um problema sob a orientação, ou em colaboração, com outro companheiro. Esta ‘zona’ define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação. Com efeito, a mais desafiante das aulas terá sido para mim a de Movimento, justamente por perceber-me alheio à consciência da minha mais correta ocupação no espaço, por não ter feedback ou espelho que me orientasse e corrigisse em caso de falha. O primeiro exercício partiu de uma coreografia improvisada a dois, com base numa frase à escolha do poema «Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo», de Sophia Andresen. Não percebi na altura como o verso “Sem os espelhos vi que estava nua”, por mim escolhido, me revelava tanta na minha vulnerabilidade.

De volta ao Centro (o nosso muito próprio espaço conventual), e como antecipara, as máscaras começaram a resvalar entre nós. Tornados para a janela da cozinha, de cigarro e falatório em riste, sucederam-se os sorrisos, as partilhas, e os agradáveis amavios de trato. Teimosamente, porém, não ainda o sincero à-vontade. Sentia-me deslocado do meu elemento mais regular: a ausência de formação específica na área levava-me a retrasar o passo na compreensão de determinados autores, técnicas e referências. E então, impus-me um redobrado esforço. Intimamente, deixava que uma nuvem de tensão engrossasse desta brusca necessidade de me integrar no cabaret, sem perder de vista a economia energética que deveria incorrer para salvaguardar o sucesso dos desafios seguintes. Talvez que fechasse as pratas com demasiada severidade, talvez Filipe Caldeira tivesse razão – numa tirada da sua correspondência com Constança Homem de Carvalho –, quando dizia que: “O camaleão, se não consegue encontrar o tom na sua procura de disfarce, acaba por morrer sozinho ao tentar ser da mesma cor do objeto onde está pousado, morre ao tentar pertencer”. Mas não estava disposto a morrer, e certamente beijaria escorpiões antes de cometer o lesivo erro de despersonalizar-me. O processo de negociação de limites com o Outro é uma das mais desafiantes realidades desta experiência. Ainda a teste, sempre a teste, num laboratório de criação muito próprio, que vai avançando e recuando, como um acerto de limbos, entre o Eu-pessoa, o Eu-ator e o Eu-personagem, à procura do meu tom mais correcto e necessário.



Capítulo #3 | Dos Pesares de um Camaleão [24.07.19]

Decidido a espantar palpitações de inquietude fui amesendar com Sophia, a primeira das minhas musas, numa pastelaria da solarenga e movimentada Praça da República. Debruçado sobre notas, sequências coreográficas e frases a decorar, ruía às trincas um cremoso «Amor de Viana» quando a tirada de Sartre me chegou de bala ao ouvido, parecendo o próprio diabo a suspirá-la: “O inferno são os outros”. Candidamente, enxuguei o recheio que me espumava os lábios de laranja gema-de-ovo, e poisei a caneta das minhas frenéticas anotações em banda; não podia evitar atender ao tópico, sobretudo dada a importância subjacente. Enfastiado, suspirei com a renitência de Sísifo, e procurei Wilde no “Ser bom é estar em harmonia consigo mesmo. A discórdia é ser forçado a estar em harmonia com os outros”. A discórdia, admiti-o numa cerebração de humildade, forçava-a eu, forçava-a esta ânsia de integração, forçava-a o medo de reexperienciar os infortúnios de Londres.

[Não é frequentemente que reevoco Londres, nem com ligeireza que nessa retrospetiva regresso ao capítulo de Thanet Street, a Rua da Morte, e às suas perturbadas páginas de solidão e terríveis sandwiches de mature cheddar pickled malted brown bread. Folheando os diários de então, relembro vagamente as passeatas de Leigh Street a Tavistock Place, a fileira de pequenas grocery stores onde insuspeitamente comparava as minhas securizantes provisões de doce, a chegada a Malet Street e o espanto silencioso das avenidas de Oxford, onde ia admirar sem esperança as casas de haute couture e rezar às multidões agitadas por um rosto familiar; nomes sem sentido como Chris e Oliver, e Olga e Penny, e Renata, Alexander, e Matt e Josh, na corrida nocturna às tabernas de Bitter, Brown Ale e Porters; tardes descoloridas numa biblioteca de estranhos, fingindo cerebrais conversações com Marx, Durkheim e Lacan, mas verdadeiramente espiando as biografias de Dali e Edward Hopper, flirtando com Adorno e Nikolas Rose, mas escapando à tautologia das suas réplicas para ouvir uma qualquer guitarrada em Covent Garden Market; a caminhada desorientada por sob os candeeiros de papel vermelho de Chinatown, a escapada para uma Kennington de pecados obscuros, os luxuosos cabeleireiros em Camden onde ia cantar “I'm gonna wash that man right outa my hair”, o terraço iluminado de estrelas da Tate Gallery, e um eremítico camarote para «A Ratoeira» no St. Martins Theatre].


Embora, pela duração de três suadas horas, a aula de Movimento me permitisse expurgar corporalmente a virulência emocional acumulada, tudo voltou a doer – e a doer intensamente – no apenumbrado auditório do Café Concerto, onde lembro o cómico olhar pisco da Professora Constança luzir com rígida sapiência por detrás dos seus rígidos aros redondos. Nenhuma outra circunstância me vira tão desesperançosamente frágil como essa: tantas eram as referências desconhecidas, tão ignotos/as os/as autores/as mencionados, tão pouco familiares as obras em discussão, que de pronto me perdi para um marcado sentido de despertença.

Interiormente, ardia com ferocidade a frustração do meu percebido fracasso: muito embora recebesse com humildade o golpe desferido aos meus narcisismos, tudo sempre em clínico benefício do crescimento pessoal, não podia deixar afundar-me na dor que ele provocava. Sabia bem o que a situação mais fundo exigia: confrontá-la abertamente, ao invés de evitá-la. Decidi então partilhar com alguns elementos do grupo a experiência desta deslocação (era assim que me sentia: removido do meu elemento natural). Foi-me grato – deliciosamente grato – receber o seu apoio, e até mesmo a celebração da minha capacidade de partilha emocional. Por momentos, a tensão desanuviou, mas ainda assim a estranheza manteve-se: talvez por gravidades da minha superexigência, talvez por desencontro de comunalidades, talvez por cansaço, talvez porque houvessem propósitos maiores que estivesse a negligenciar. Sabendo que nos identificamos por comparação, ora positivamente (quando o ‘eu’ se diz igual ao elemento de comparação) ora negativamente (quando o ‘eu’ se diz distinto do elemento de comparação), talvez este fosse um útil indicador a respeito das exigências que o teatro me reservasse: e tudo era aprendizagem, sempre aprendizagem. Com o Laboratório de Criação, o meu foco atencional tornou para os desafios do trabalho por desenvolver: daí por diante, passaria a privilegiar a minha preparação em palco, por forma a minorizar o desenquadramento social. Longe estava eu de imaginar que, por detrás da máscara dos personagens suscitados pela criação de Guillermo, pudesse encarnar o papel da «Vénus gatuna» do meu «Sonhar com Ladrões», tão a jeito com o vestido que ele propôs que usássemos em cena, tão maneirinho com a maquilhagem, com o tanto de Pina e Almodóvar e Billie Holliday que animava as suas visões.


Não há nada de mais bonito para o criativo do que ver a obra ganhar forma. Até ir perfazendo a cuba do desejo, participar da fantasia de um espetáculo, vê-lo crescer, por tentativa e erro, reconhecer a nossa contribuição pessoal como um legado genético para a supersoma de um filho (“A child is born / Her chin is like mine / But her eyes are yours”), tem algo de cerimoniosamente grande: algo de místico. Só se me não fazia ainda pacificado este castelo de areia que me atarefava a construir de um lado, e que sentia ir desagregando do outro. A noite foi por isso mais fria. Ao meu lado, na mesinha de cabeceira, entreteladas por entre a capa que habitualmente serve de suporte aos registos em setting terapêutico, três musas resfolegavam de constante inquietude, indiferentes ao sono que me não chegava; e no cabide fronteiro à cama, o vestido que Guillermo distribuíra para adereço de personagem, tombava interrogativamente da cruzeta. Estampados de negro, vermelho e branco.... ("Sem espelhos, vi que estava nua"). Salta, camaleão, salta - dizia de mim para comigo mesmo: salta que não é este o teu melhor tom. Repeti algumas das frases a decorar até por fim adormecer, restolhavam ainda risos e guitarradas na cozinha.


Capítulo #4 | Dores Parturientes [25.07.19]

Novo dia, e andava eu por Viana em secretas poses coreográficas, repetindo – em silêncio, surdina e em voz alta – as frases de Sophia, Sylvia e Sor Juana, em distintas enunciações experimentais, aproveitando posturas soltas para de pronto ostentar a flexuosidade de um súbito alongamento de pernas ou braços, como se o empedrado fosse todo um constante palco aos meus pés. Era viver o personagem de ator, adentrar-me um pouco mais nesta outra maternidade artística, validar os esforços da minha reivindicação identitária. Em mim, o malabarismo das várias facetas a gerir multiplicava-se-me com a fartura de um pescoço de Hidra. O que todo este exercício tinha de desafiante, tinha também de prazenteiro; porquanto o primeiro se não se sobrepusesse ao segundo, dizia de mim para comigo mesmo, estaria seguro e certo de cada passo dado.


No Laboratório de Criação, seguiam-se as aprendizagens e as reflexões, desta feita sobre a mudança de paradigma dos grandes cânones (de inspiração aristotélica), onde a ênfase estava na transmissão de uma determinada mensagem ao público, para a pós-dramatização, cujo foco se detinha antes na capacidade de emocioná-lo. Tornou-se claro que iríamos avançar por um terreno de abstração, para um mundo não-narrativo, não tradicional. Guillermo apresentou-nos então à próxima tarefa criativa: a partir de uma frase de uma das poetisas que nos tocasse por atribuição aleatória, deveríamos construir toda uma improvisação individual, a que deu o nome de núcleo dramatúrgico, para mais tarde compilarmos as várias propostas, fundi-las às coreografias dos professores (núcleos induzidos) e divisarmos a supersoma do espetáculo. Sobre mim, fera espada de Dâmocles, senti engrossar-se o triplicado peso da exigência. As ideias andavam-me aos encontrões por entre os quartos da mente; não havia uma que exercesse império, não havia uma que se decidisse, não havia uma que se afirmasse. Evoquei ensinamentos da psicologia, remexi baús antigos de conceitos literários por desenvolver, rabisquei alguns esquemas, procurei focar-me, organizar-me, encontrar-me e, por último, pausei-me a ouvir o eco que essas ressonâncias produzissem. Aos poucos, a revelação, e de repente, como escrevera em «Erlangua», tomei consciência de que o conceito “[s]empre lá esteve: nidificado na penumbra, aguardando uma fulgência que o iluminasse e me fizesse perceber que aprendê-lo era recordá-lo. Não fosse tão forte a ideia da sua eterna presença e de tal modo enraizada em mim, decerto lhe guardaria exata a memória da primeira aparição. Foi essa a força que primeiro viveu: estava em mim como a impressão de existir”. Desde a Católica (seguindo depois, mais tarde, para Birkbeck College) fui nutrindo interesses pelo estudo da dimensão abstrata do discurso societal, aquele onde se concentram todas as expectativas que a sociedade acalenta quanto ao comportamento de cada um/a. Esta dimensão lembra-nos que a palavra é performativa, que a palavra cria realidades, que a palavra é poder: poder de / poder para construir e desconstruir o mundo. Tenho-me por construtivista, defende o papel ativo do sujeito na criação e modificação das suas representações do objeto do conhecimento, e o meu interesse intelectual foi estimulado por certo verso de Sophia no poema «Pátria».



Não revelarei, senão em cena, o conteúdo da improvisação, mas poderei adiantar certos detalhes concetuais: mais do que uma mudança, há uma história de emancipação. Aqui, a história do poder da afirmação pessoal contra tudo o que atenta contra a totalidade do ‘Eu’ é sinónimo de liberdade: a liberdade para ser-se. Conforme a projetara, a improvisação iria requerer a ajuda de três colegas, e foi com tremendo prazer que recebi a sua pronta disponibilidade para participar. Inspirada pelo trabalho, a interação fez-se mais folgada um pouco, e o ânimo ressurgiu para me aproximar do grupo. Ainda assim, caso persistisse, como Tântalo, via todo o meu esforço redundar em fracasso, ao ponto de decidir focar-me nas tarefas pedidas, onde um sentido de controlo me protegia e serenava. Sem os espelhos, continuava a sentir-me nu. Mas estava longe de imaginar o que os próximos capítulos me trariam.


Capítulo #5 | "It's a snap" [26.07.19]

Era ter o sentido de pertença no fio da navalha, cada vez mais excluído da moldura, era ter a bomba da rutura relacional prestes a detonar, era querer desistir já e, simultaneamente, insurgir-me contra essa fraqueza. À medida que o cansaço aumentava, diminuía-se-me a tendência ostensiva para expressar-me ator-personagem rua afora. Cautelosamente, com vagares artríticos, já só procurava as poses relaxadas, pensando nas ensinagens do professor Luciano Amarelo – durante a minha incursão pelo grupo de teatro Terra na Boca, no Porto –, sobre a importância da economia de movimentos para preservação máxima da energia necessária. E é tudo, fundamentalmente, uma questão de energia.


Há que reconhecê-lo, e reconhecer o esforço do/a ator/iz. Quando primeiramente expus «Pedra Papel Tesoura Beija-me» na galeria Days Are, não imaginava o tanto pelo qual a minha queria amiga Aurelina, a curadora, teria de passar: desde as questões logísticas mais práticas, até ao trato com as minhas indecisões perfecionistas. Só mais tarde o compreendi, quando eu próprio inaugurei na CresSendo, sob a abada do projeto Arte CresSendo, a primeira edição da Feira de Arts & Crafts. Também agora, porque de forma mais contínua e comprometida, me vejo arcar com as responsabilidades do ser-se ator, é que mais devotamente sinto respeitar a profissão e o que ela implica.

Há austeridade aqui. Não é com estrelas nos olhos que perturbamos o público; não é com poesia que, no palco, nos retemos em pontas ou meias-pontas; o floreado de um braço em movimento de onda não subsiste da estilização do mar em que a imaginemos. A beleza da pose implica a dureza do corpo, implica o suor da exigência, o calo e o sangue do esforço de robustecimento. Cada salto deve ser meticulosamente pensado, para depois se libertar na memória da sua treinada execução, e transmitir a impressão de espontaneidade; cada emoção deve ser permitida para que se não bloqueie o que haja de improvisação.

Mas hoje, o desafio era novo e fazia ressoar inseguranças velhas: trocaríamos o palco do Teatro Sá de Miranda pelos jardins da Casa Manuel Espregueira e Oliveira, onde filmaríamos partes dos blocos coreográficos. O objetivo de Guillermo, assim nos explicou, era incluí-los na apresentação final, entremeando os núcleos, contrastante realidade e virtualidade, presença e evocação. Embora tudo ali atraísse o olhar, a disposição geral do humor não era a mais encorajadora. Era sentir o 'snap' daquela teia relacional que mais me fragilizava o espírito. Mas o trabalho impunha-se. Como adereço, um casaco grosso; como indicação, as falas já marcadas. O trabalho era, por enquanto, prevalentemente técnico: a difusão dos núcleos (quer dramatúrgicos, quer induzidos) não nos permitira encorpar personagem algum, fazendo com que a minha inclinação para o realismo se debatesse com as agruras da frustração. Senti-me perder terreno diante da objetiva da câmara, mas tal como os/as demais, entreguei-lhe o meu melhor.

No final, cada um/a seguiu o seu caminho. De phones para uma Ariana tristonha, fui sentar-me perto do Gil Eannes», e prossegui pela marginal, até voltar ao Centro. A noite chegou rápida. Da cozinha, altissonorizavam-se as vozes animadas da convivência, enquanto o meu quarto, solitário, se invisibilizava aos poucos na escuridão. No dia seguinte, realizaríamos a prova de maquilhagem. «Pinturas de guerra» sobre um camaleão. Pinturas para um rosto alçado, que ‘al mal viento, bueno cara’.

Capítulo #6 | "Amuo e Desamuo": Um Monodrama em Três Atos [27.07.19]

Doído de músculos e incerto de robustez óssea, naquele adoecido amolecimento de cansaço febril, acordei cedo, pela estridência das gaivotas que, do lado de lá da janela, iam circulando a crista de vidro eriçada acima dos claustros. O programa reservava-nos para hoje uma «Visita Cultural» a Viana, envolvendo o tradicional «Gil Eannes», onde o médico psiquiatra, Dr. António Martinho do Rosário, conhecido como dramaturgo sob o nom de plume Bernardo Santareno, escreveu algumas das suas obras, nomeadamente O Lugre (1959), e ainda o Museu do Traje, na Praça da República. Estava já decidido, porém, a permanecer no Centro, onde deveria compilar notas, preparar a sequência de movimentos do espetáculo final, e descansar: assim foi. O meu primeiro amuo. Viana amanheceu à chuva; pela uma, o sol queimava já de novo. Quando o grupo chegou da visita, saía eu do quarto, preparado para almoçar. O grande terraço do Viana Estação, com prodigiosas vistas sobre a cidade, convertera-se num muito estimado ponto de recolhimento para mim. Altaneiro quartel-general, era ali que decidia sobre os meus passos e mais, sobre os meus estados anímicos. 

É certo, não tinha contado com as possibilidades de um entrave social – tenho-me por bastante expansivo: mas julguei estar a adaptar-me bem às suas custosas implicações. Sem fechar fronteiras com o Outro, territorializei a minha autonomia, e fi-lo com o orgulho que a pulso fui conquistando ao longo dos anos. A companhia surgia a espaços, nunca para grandes demoras, nunca para realmente saciar a necessidade de interação. Mas sabia quem era, e sabia dos meus propósitos. Era tempo de trabalhar. Nos camarins femininos do Teatro Municipal, Adriel esperava-nos para a aula de maquilhagem. Primer, corretor, base, stick para contornos, fixador, blush, sombras, iluminador, lápis para contorno de olhos, lápis para sobrancelhas e batôn – simples. O resultado estético final é o que se percebe, vagamente, pelas fotos; o outro, emocional, só mais tarde se revelaria.


Trabalhar o poético feminino – conforme proposto por Guillermo – era um exercício de ‘animação’ que explorara na perspetiva junguiana subjacente a «Sonhar com Ladrões». Relembrando, “A anima, sendo feminina, é a figura que compensa a consciência masculina. Na mulher, a figura compensadora é de caráter masculino e pode ser designada pelo nome de animus”. Segundo Jung, em conformidade com os traços psicológicos de cada indivíduo, as tendências do sexo oposto vão sendo reprimidas e acumuladas no inconsciente, influindo sobre o princípio psíquico dominante do homem ou da mulher. Correspondem aos Arquétipos feminino, no homem, e masculino, na mulher, tendo as suas raízes no inconsciente coletivo, fazendo parte de toda uma herança primordial que nos configura a perceção do sexo oposto. A grande contribuição destes conceitos é a da afirmação de que o ser é andrógino: em cada homem existe o reflexo de uma mulher, e vice-versa.

Segundo Von Franz (2002), o “Anima é a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem — os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, por fim, o relacionamento com o inconsciente“. A estas, o psicanalista João Neto acrescenta a flexibilidade, a tolerância, a proteção, e a criação. Ao Animus, por seu turno, estão associadas características como a acção, a razão, a lógica, a agressividade e a destruição. Anima e Animus funcionam como complementos às qualidades correspondentes ao género expressas pela Persona de modo a assegurar um equilíbrio que permita maior compreensão acerca do próprio eu e também do outro. Na mulher que seja caracterizada por uma Persona emocional, o Animus seria o seu complemento racional. De igual forma, o Anima será o complemento emocional do homem cuja Persona seja racional. Jung não considerava nenhum destes pólos de género como superior ao outro: apenas duas metades de um todo.

Detendo-nos agora numa análise sociológica, estas noções ajudam à compreensão dos papéis sociais e culturais atribuídos ao homem e à mulher. Com efeito, ao observarmos o comportamento social percebemo-lo marcado por aspectos masculinos, o que poderá explicar o predomínio da lógica da ciência cartesiana, o desenrolar das constantes guerras, a generalizada insensibilidade face ao Outro e o (re)nascimento de regimes autoritários/fascistas, desde Mussolini e Hitler, a Kim Jong-un, Trump e, mais recentemente, a Jair Bolsonaro. Contudo, “da mesma forma que as individualidades caminham para a integração dos conteúdos divergentes, também a humanidade, como somatório das individualidades que a compõem, caminha para a superação da sua tendência Animus e o crescimento do seu Anima. A cultura machista vai cedendo espaço à presença da mulher, que tanto cresce na absorção do que lhe falta de Animus, como influencia o todo com o que tem de Anima” (João Neto).


Também os homens têm que lutar contra a introjeção do machismo facilitado pela sociedade-Animus, lutando contra tendências internas que são, na verdade, reforçadas pelo contexto sócio-cultural. Como homem, revendo-me nesta dinâmica, prezo as palavras de Sanjeev Himachali: “For every woman you know who has been given substandard treatment by her parents, used by her friend or boyfriend, abused by her husband, discriminated by her employers and ridiculed by society, I know a man who has been burdened with family responsibility since childhood, humiliated by his girlfriend, bullied by his employers, pushed by society and harassed by his wife. Everybody is fighting their own battle”.

“Amuo; segundo ato”. Estava previsto um jantar conjunto para essa mesma noite. Contudo, o desprazer da percebida não integração pontapeou-me para longe, e inspirou-me a fintá-lo. Lembrado de um amigo em Meadela, convidei-o para um pós-jantar de desabafos e reencontros. Não foi remisso em declarar a sua vulnerabilidade, ao partilhar comigo as dificuldades que sentia na sua integração universitária. Bastou essa tão simpática abertura para me aquecer o coração. À medida que as partilhas se iam sucedendo, e a noite se fazia mais escura ao som de Lana, Moses Sumney, Cinematic Orchestra e Phill Veras, sentia a tirania da superexigência enfraquecer, e o amuo desfazer-se, por fim, num sorriso de compaixão interior. Pré-preparado por toda uma sequência de passos de maquilhagem, era o meu feminino que agora rejubilava. Na companhia muito humana do meu amigo, à ponta dos lábios, renovado, chegavam-me palavras de esperança e de gozo: “Pode me algemar, porque eu não quero me perder / Pode me prender, me obrigue a ficar / Pode me dopar / Põe algo pra gente ouvir / Pra me distrair, não quero lembrar / Me obrigue a beber pra eu desmaiar / Pode me trancar / Pede alguém pra te ajudar".


Capítulo #7 | "Às Quatro" [28.07.19]


Domingo. “Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora fora chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieto e agitado: descobrirei o preço da felicidade!” (Saint-Exupèry). Meu poético feminino, minha urgência de ternura que como a hera morre se não se apega – obrigado. Tempo para descansar e recuperar. Porque não é sempre necessário estarmos constantemente tão ocupados, puxando-nos para a extrema maximização dos nossos potenciais. Recuar e tomar conta de nós. Porque estes momentos ‘eu’ acrescentam valor, energia, propósito e criatividade a tudo quanto fazemos. Da praia do Cabedelo a Santa Luzia, Domingo foi para o abraço que o meu feminino me deu por dentro.








                


















Capítulo #8 | "Sylvia, Sylvia" [29.07.19]






  
Arrancava a segunda e última semana da Escola de Atores. Depois do alegre convívio vespertino, acordei fisicamente revigorado e emocionalmente mais atreito a enfrentar o programa do dia e a interação com o grupo: uma nova ronda de filmagens, desta vez, na Praia Norte, e o display da nossa improvisação individual com a frase de Sophia inclusa no jogo dramático. Havia já revisto e renovado o roteiro de didascálias que preparara para ajudar à encenação dos ‘meus atores’, faltando agora apenas imprimi-lo e renovar a provisão de adereços da nova versão. Saí do quarto e avancei para a cozinha, onde a Rita preparava um pequeno-almoço de cereais e pão com queijo branco. Falámos brevemente, mas no tom sossegado que convida à partilha íntima, e que tanto elogio faz ao que de mais humano temos; encostado à banca da cozinha a descascar um pêssego, ouvi-lhe como quem se instrui a sugestão de que talvez todos os meus pruridos relacionais pertencessem mais ao domínio da fantasia do que ao da realidade. Saí do Centro a meditar sobre esta imprevista conversa matinal, e depois de cumprir as devidas tarefas, sentei numa das pastelarias laterais da Avenida dos Combatentes, a rever textos e sequências coreográficas. A experiência na Praia Norte viu-me mais desinibido, aberto a entender o espaço individual de cada um sem a tonalidade ameaçadora de exclusão que lhe havia inicialmente atribuído; liberto das tramas dessa fantasmagoria, a interação fluiu mais espontaneamente, e o trabalho de filmagens tomou a forma de um desporto prazenteiro. 

Satisfeita a visão de Guillermo, voltámos de carro para o Teatro, puxados ao volante pelo diretor artístico do Teatro do Noroeste, Ricardo Simões.
Já de regresso ao Centro, troquei o isolamento do quarto pela amplidão da sala de convívio, onde amesendei com o Miguel, o João e o Alexandre para cantar à guitarra versões tentativas do fado «Havemos de Ir a Viana». A animação prosseguiu para os quatro na forma de um improvisado sunset radical, vertiginosamente montado por sobre as telhas musgosas do telhado do Centro. Estirado a fumar sobre o escorregadio plano descendente, dei por mim de cabeça nas nuvens e arrepio fundo na barriga, voando em torno com as estrídulas gaivotas livres, secretamente feliz pela minha vitória sobre o medo. Ao descer, senti que os pés se me assentavam em terra nova – mais firme, confiante, mais luzidia. Por dentro algo celebrava juventude, por dentro algo celebrava vida. E sem polémicas fui atrás. Minutos depois, em grupo, seguimos para o último Laboratório de Criação do dia, onde cada núcleo foi revisto e discutido.

Findo o ensaio, outra festa se celebrou alto: a do aniversário do nosso querido Guillermo Heras. Serviram-nos Cava em flûte, e talhadas de bolo doce; dançámos e rimos e bebemos e fumámos – a noite fez-se imensa, interminável. 

Era então este o desafio que Viana me reservara; era nesta cátedra que me queria educado. Já não havia luta à qual me não rendesse. Um último copo antes de adormecer feliz, e Sylvia Plath a falar dos meus fantasmas ao ouvido: «Acho que te criei no interior da minha mente, acho que te criei no interior da minha mente, acho que te criei no interior da minha mente». 

Capítulos #9 e #10 | Putting It Together [30 a 31.07.19]

Falta um dia para a estreia. Todo um reboliço, toda uma palpitação, tudo em ação, tudo nascendo, tudo a tornar-se qualquer coisa. Em pressas de roda, de gazela, de tigre e águia alta, esvoaçamos pelo palco, de pontas saltitantes e suor em baga; vamos repetindo, uma e outra vez, cada troço da sequência coreográfica, pausando para revisões e arranjos de última hora, ajustando desalinhos lumínicos e cronométricos, para novamente testarmos e apurarmos a versão final.

Pelo meio, todo um suceder de privilegiadas aprendizagens, como as colhidas com o Ricardo Simões a propósito da iluminação, e na aula de Oralidade, a cargo do grande João Henriques, sobre a importância de coordenarmos o eixo pensar-sentir com a dimensão fisiológica da respiração, de focarmos o abdómen e abrirmos a garganta, de assegurarmos uma voz presente e comunicante, de uma voz aqui e agora, a explorar-se, a descobrir-se, a afirmar-se, de limparmos cada frase da típica medonha melopeia poética, e fazermos um detox de quanto estivesse a mais. Também a Isabel Barros me havia já advertido para os perigos da exagerada expressividade facial. [Falta um dia para a estreia].

Com o João percebi que o mesmo sucedia a nível vocal: que ia insistindo em desautorizar o poema da sua própria mensagem, criando inflexões dramáticas em jeito explicativo, fazendo pesar sobre a frase um desnecessário e maçador tom fanfarrónico. «Limita-te a dizê-lo» aconselhou com firmeza. E assim fiz. A minha voz ergueu-se limpa, sem perversões para o excesso, ressoando ao fundo da sala, como se a beijasse no escuro de atrás de cortinas, apaixonada por mais uma conquista. [Falta um dia para a estreia].

A interação tem-se agora tornado mais fluida e mais prazenteira; há toda uma impressão de força maior a unir-nos em supersoma, como se nos cosêssemos na mesma trama – um só corpo, uma só voz, um só movimento. Que não desacelera, que não pára, que está constantemente em dinâmica. [E falta um dia para a estreia].


Capítulo #11 | "Ondas Ordenadas" [01.08.19]

Ensaio Geral. Estreia já amanhã, às 21H30, no Teatro Sá de Miranda, em Viana do Castelo. Entrada gratuita. 


Capítulo #12 |”A Tarântula” [02.09.19]

O teatro é uma estufa de erotismo em fogo. Paixão, fúria, pose, corpo, amor, desdém, desejo, inveja. Ao descer do camarim travei-me sozinho nas escadas para ouvi-lo: alguém dedilhava o piano nos bastidores do ciclorama; pés de Dafne corriam rápidos pela extensão do palco, fazendo estalar as tábuas do tablado negro, onde outros/as se estirariam em exercício de alongamentos; de parte incerta, um trautear de voz feminina fundia-se ondeadamente aos sussurros dos camarins de baixo, expandindo-se para quem, à entrada, comentava displicentemente o andamento do espetáculo. Espreitei o palco pelo lateral das pernas, avancei depois pelos bastidores – era o palpitar do ensaio-geral, era o último dia da Escola de Verão, como se do final do Verão todo se tratasse. “The iron tongue of midnight hath told twelve”. Aqui parou, Senhor Bianchi, o meu muito próprio comboio de doze dias; uma incursão pelo viço de relvas novas, pés descalços entre trevos e serpentes: o jardim uno, o jardim total. E onde vi os múltiplos e bizarros adereços, o Steinway, os cabos, as cordas, as malaguetas, o ciclorama, as luzes robóticas, a teia… vi-me também a mim. Em fogo. Mais uma acha deitada ao incêndio erótico da grande estufa, um pouco mais completo, um pouco mais eu, florescendo corpóreo – extraordinariamente corpóreo.


Chega-se a casa do teatro com restos de purpurina em desprevenidos recessos do corpo cansado; há no trânsito de mundos uma tontura de jet lag, e um sorriso de cravos, vencido pelo frenético movimento dos pés dançantes. Chega-se a casa do teatro arrastando-se a sombra do aperto de abdómen justo antes da projeção de cada fala, com o abrasivo encandeamento das ribaltas fixando na vista a silhueta de luzes da grande expectativa do auditório. Chega-se com Pina, e Sophia e Juana e Sylvia, trazendo a reboque a chiclete chata dos marcadores de colocação pegajosamente afetos às meias e à vestimenta de trabalho, com as já pálidas partículas daquele tão garrido batôn que nos fez ser Julieta, Virgínia, Manon e Francesca. Chega-se a casa do teatro, e o teatro não termina – o teatro adentra veias, circula-as imparavelmente, reclama aos pulmões o mesmo oxigénio de libertação. Chega-se dançando, cantando, atirando-se ao espaço o corpo como um punhado de sementes, elétrico, febril, mercurial – “Este rapaz não pára de dançar! Foi mordido pela tarântula” (Charles Dibdin). Ao Teatro do Noroeste, ao Ricardo Simões, ao Guillermo Heras, à Isabel Barros, ao João Henriques, à Constança Homem, ao Adriel, à Ana, e a todos os meus colegas, atores e atrizes, que fizeram possível esta magnífica experiência, pelas memórias, pelas aprendizagens, pelas inspirações, o meu mais vianense obrigado. 
Não, Senhor Bianchi, este corpo não sabe de terminais – ganha mais pressa sobre os carris, não quer parar. Tudo porque sei que…

Há cidades acesas na distância,Magnéticas e fundas como luas,Descampados em flor e negras ruasCheias de exaltação e ressonância.

Há cidades acesas cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.

E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoas e de não ser


(Sophia de Mello Beyner Andresen | “Poesia”, 1944)



Até breve.
Carlos Marinho




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Painel Semântico I – O Processo de Individuação por Carl Gustav Jung (3/3): Em que consiste o Processo de Individuação?

HOJE NO DIVÃ... Janel Bragg | Watermedia artist, Artwork studious, Photographer [EDIÇÃO INTERNACIONAL]

HOJE NO DIVÃ... Artur Caldeira | Professor, Especialista em Música, Guitarrista, Arranjador, Produtor e Diretor Musicais