Painel Semântico I – O Processo de Individuação por Carl Gustav Jung (3/3): Em que consiste o Processo de Individuação?



Painel Semântico I – O Processo de Individuação por Carl Gustav Jung (3/3)

SONHAR COM LADRÕES é um projeto policoncetual que parte de uma combinação entre ensaio científico, escrita literária e ilustração por técnica de colagem, para contar a história ficcional de Laura, uma mulher pós-moderna confrontada com os desafios do seu próprio crescimento. Do ponto de vista concetual, a compreensão que quis subjacente ao construto de crescimento vem enformada pela intersecção de duas perspetivas distintas: uma psicológica, vazada no conceito de individuação conforme proposto por Carl Gustav Jung, o fundador da psicologia analítica; e uma outra, de cariz sócio-político e filosófico-ideológico, vazada nos esforços feministas de segunda vaga, valorizadores e celebratórios das qualidades e capacidades particulares das mulheres, com particular destaque para as questões da sexualidade. 

A exposição tem por base a história do conto em prosa poética «Sonhar com Ladrões» exibido em 15 pranchas de texto (capítulos) a que se fazem corresponder 15 telas com as respetivas ilustrações, por técnica de colagem.

Seguem-se, em maior detalhe, as principais influências do projeto:

I – O Processo de Individuação por Carl Gustav Jung (3/3)

3. Em que consiste o Processo de Individuação: Todo ser tende a realizar o que existe nele em germe, a crescer, a completar-se. Assim é para a semente do vegetal e para o embrião do animal. Assim é para o homem, quanto ao corpo e quanto à psique.” (Silveira, 1983). A individuação é a busca da totalidade que há no ser humano, um movimento para a sua autorrealização como individualidade, através de um processo de integração dos diversos componentes psíquicos, de forma que todos os componentes da psique tenham o seu espaço e possibilidade de existência. Conforme Jung, “A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É portanto um processo de  diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual” (2009, p. 853).

O Self e o Ego: Para Jung, o modelo do ser completo, matriz de todo o progresso do ser, e padrão segundo o qual se desenvolvem as características de individualidade de cada um, está plasmado na noção de Self, o centro transcendente que abarca a totalidade dos dois grandes opostos: o inconsciente e o consciente. Ao longo do processo de adultificação, o aparelho psíquico vai formando a partir do Self uma outra instância designada por Ego.

Para Jung, o Ego é uma pequena porção do Self que concentra a consciência que nos permite um sentido de identidade e existência, seleccionando as informações mais relevantes do ambiente e escolhendo que direcção tomar baseado nelas. É do Ego que depende a forma como uma pessoa se relaciona com o mundo externo, sendo esta determinado pelos seus níveis de extroversão (orientação para o exterior) e introversão (orientação para o interior) e como fazem uso das funções do pensamento, dos sentimentos, das sensações e da intuição. Algumas pessoas têm desenvolvidas mais de uma ou duas dessas facetas do que as outras, o que resulta na forma como percebem o mundo arredor.

O Inconsciente Pessoal, a Persona e a Sombra: Na interação com o mundo externo, forma-se o que Jung designou por Persona (máscara), a identificação do quem-eu-sou com o-que-eu-faço, i.e., a identificação do ser com os seus papéis familiares, pessoais e sociais. Tal máscara apenas estimula a nossa individualidade, mas não a exprime na sua inteireza – o que pensamos ser individual e exclusivo em nós é, na verdade, coletivo. No fundo, nada tem de real; ela representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade acerca do que alguém parece ser: como um nome, um título, uma ocupação.

Enquanto arquétipo, a Persona possui uma certa autonomia relativamente ao Ego, podendo 'engoli-lo'; se o Ego se identificar com a Persona, o indivíduo poderá comportar-se de forma unilateral em situações externas, gerando problemas de adaptação social. Para compensar esta unilateralidade, o aparelho psíquico desenvolve um lado obscuro designado por Sombra, concentrado no inconsciente individual, que Jung descreve como reservatório de “Tudo o que eu sei, mas no qual eu não estou pensando no momento; tudo de que eu era uma vez consciente, mas agora tenho esquecido; tudo percebido pelos meus sentidos, mas que não foi observado por minha mente consciente; tudo o que, involuntariamente e sem prestar atenção, sinto, acho, lembro, quero, e faço; todas as futuras coisas que estão tomando forma em mim e vão em algum momento chegar à consciência (…) todas as repressões mais ou menos intencionais de pensamentos e sentimentos dolorosos”.

Parte da personalidade total do indivíduo, a Sombra concentra tudo quanto não aceitamos, o que consideramos repugnante, o que reprimimos em nós e projetamos sobre os outros. Embora a Sombra constitua um conjunto de componentes diferenciados (fraquezas, imaturidade, complexos reprimidos, forças maléficas) considerados negativos, ela possui também “traços positivos”: qualidades não desenvolvidas por razões externas ao indivíduo, ou então por falta de energia necessária à sua superação (Silveira, 1983).
 Nos casos de neurose, deparamo-nos sempre com uma Sombra consideravelmente densa; a sua cura exige um caminho através do qual a personalidade consciente e a Sombra possam conviver (Jung, 1987, p. 81).

O Inconsciente Coletivo: A inovadora noção de inconsciente coletivo traz subjacente a ideia de que o universo é uma matéria vida, de que todas as suas formas têm uma memória inconsciente. Quando o ser humano nasce, traz já incorporada geneticamente, desde a origem da humanidade, uma memória composta de imagens armazenadas no inconsciente, passada de geração em geração. Este reservatório, à semelhança de uma ‘biblioteca universal de experiências’, é partilhado por todos os seres humanos.

A aplicação e adaptação conscientes destas imagens apriorísticas e primordiais à realidade originam variações a que Jung designou por Arquétipos. Para Von Franz (1992), os Arquétipos assumem as formas de vivências do ser humano ao longo de todas as experiências da humanidade, e manifestam-se através de mitos, lendas, contos de fadas, sonhos – símbolos. Segundo Jung: é “nos mitos e contos de fada, como no sonho, [que] a alma fala de si mesma e os arquétipos se revelam na sua combinação natural, como formação, transformação, eterna recriação do sentido eterno”. Nestes, encontramos situações similares como “a jornada do herói” ou “a luta contra o monstro (dragão) para salvar a donzela“.

Segundo Jung, “Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, apenas formas sem conteúdo, representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e acção. Quando algo ocorre na vida que corresponde a um arquétipo, este é ativado e surge uma compulsão que se impõe a modo de uma reação instintiva contra toda a razão e vontade, ou produz um conflito de dimensões eventualmente patológicas, isto é, uma neurose”.

No número de Arquétipos descritos por Jung contam-se a “criança” (representando a inocência, o renascimento e a salvação), o “velho sábio” (representativo da sabedoria, do conhecimento e da orientação), e outros como “o herói”, “o vilão” e “a prostituta sagrada”. Uma extensa variedade de símbolos pode ser associada a um Arquétipo. Por exemplo, o Arquétipo materno compreende não somente a mãe real de cada indivíduo, mas também todas as figuras de mãe, figuras nutridoras. Isto inclui mulheres em geral, imagens míticas de mulheres (tais como a Virgem Maria, a Mãe Natureza) e símbolos de apoio e nutrição, tais como a Igreja e o Paraíso.

O Arquétipo inclui aspectos positivos e negativos; no caso do Arquétipo materno, a mãe pode igualmente ser ameaçadora, dominadora ou sufocadora (na Idade Média, este aspecto do Arquétipo estava cristalizado na imagem da “velha bruxa”). Por serem anteriores e mais abrangentes que a consciência do Ego, os Arquétipos criam imagens ou visões que equilibram alguns aspectos da atitude consciente do sujeito.

Anima e Animus: Constituem as instâncias contrasexuais da nossa psique, e concentram as qualidades inerentes ao sexo oposto. “A anima, sendo feminina, é a figura que compensa a consciência masculina. Na mulher, a figura compensadora é de caráter masculino e pode ser designada pelo nome de animus”. Segundo Jung, em conformidade com os traços psicológicos de cada indivíduo, as tendências do sexo oposto vão sendo reprimidas e acumuladas no inconsciente, influindo sobre o princípio psíquico dominante do homem ou da mulher.

Correspondem aos Arquétipos feminino, no homem, e masculino, na mulher, tendo as suas raízes no inconsciente coletivo, fazendo parte de toda uma herança primordial que nos configura a perceção do sexo oposto. A grande contribuição destes conceitos é a da afirmação de que o ser é andrógino: em cada homem existe o reflexo de uma mulher, e vice-versa.

Segundo Von Franz (2002), o “Anima é a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem — os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, por fim, o relacionamento com o inconsciente“. A estas, o psicanalista João Neto acrescenta a flexibilidade, a tolerância, a protecção, e a criação. Ao Animus, por seu turno, estão associadas características como a acção, a razão, a lógica, a agressividade e a destruição.

Anima e Animus funcionam como complementos às qualidades correspondentes ao género expressas pela Persona de modo a assegurar um equilíbrio que permita maior compreensão acerca do próprio eu e também do outro. Na mulher que seja caracterizada por uma Persona emocional, o Animus seria o seu complemento racional. De igual forma, o Anima será o complemento emocional do homem cuja Persona seja racional. Jung não considerava nenhum destes pólos de género como superior ao outro: apenas duas metades de um todo.

Detendo-nos agora numa análise sociológica, estas noções ajudam à compreensão dos papéis sociais e culturais atribuídos ao homem e à mulher. Com efeito, ao observarmos o comportamento social percebemo-lo marcado por aspectos masculinos, o que poderá explicar o predomínio da lógica da ciência cartesiana, o desenrolar das constantes guerras, a generalizada insensibilidade face ao Outro e o (re)nascimento de regimes autoritários/fascistas, desde Mussolini e Hitler, a Kim Jong-un, Trump e, mais recentemente, a Jair Bolsonaro. Contudo, “da mesma forma que as individualidades caminham para a integração dos conteúdos divergentes, também a humanidade, como somatório das individualidades que a compõem, caminha para a superação da sua tendência Animus e o crescimento do seu Anima. A cultura machista vai cedendo espaço à presença da mulher, que tanto cresce na absorção do que lhe falta de Animus, como influencia o todo com o que tem de Anima” (João Neto).

Também os homens têm que lutar contra a introjecção do machismo facilitado pela sociedade-Animus, lutando contra tendências internas que são, na verdade, reforçadas pelo contexto sócio-cultural. Como homem, revendo-me nesta dinâmica, prezo as palavras de Sanjeev Himachali: “For every woman you know who has been given substandard treatment by her parents, used by her friend or boyfriend, abused by her husband, discriminated by her employers and ridiculed by society, I know a man who has been burdened with family responsibility since childhood, humiliated by his girlfriend, bullied by his employers, pushed by society and harassed by his wife. Everybody is fighting their own battle”.

É na busca da superação de uma sociedade patriarcal e machista que os feminismos surgem como movimentos de luta. Faça-se um shout-out a alguns dos mais recentes: Ask Her More, Me Too, Time’s Up, He For She. Fazendo minhas as palavras de Neto, “[A]credito em uma humanidade futura mais ânima, mais feminina, mais flexível, tolerante, ligada ao sentimento, à intuição,mais capaz de amar incondicionalmente, evitando os conflitos, protegendo o mundo afetivo e criando… criando um mundo melhor para se viver”.

Como se dá o Processo de Individuação: Quando conteúdos inconscientes são trazidos à consciência há uma diminuição gradual da influência dominante do inconsciente, produzindo-se assim o surgimento de uma nova consciência. Jung entende que o alcance da consciência desta totalidade (ampliação de consciência) é a meta de desenvolvimento da psique, e que eventuais resistências em permitir o desenrolar natural do processo de individuação serão potenciais causas de sofrimento e doença psíquica, uma vez que o inconsciente tenta compensar a unilateralidade do indivíduo.

A compensação inconsciente de um estado dito ‘neurótico’ da consciência contém todos os elementos que, quando conscientes, isto é, quando compreendidos e integrados como realidades na consciência, são capazes de corrigir eficaz e salutarmente a unilateralidade da consciência.

Quando Ego e Self mantêm uma relação contínua, o ser humano poderá não só consolidar um sentido de individualidade única, mas também um de conexão com uma experiência mais ampla da existência humana, tornando-se capaz de viver de um modo criativo, simbólico e individual. Bem entendido, o processo de individuação é o caminho para este equilíbrio.

A dificuldade do processo, contudo, está nas múltiplas exigências que as suas diferentes fases comportam. Alcançar a predominância do Self como princípio unificador da personalidade implica que o Ego deixe de se reconhecer como o centro da psique, para se relacionar com o Self, ou seja, abdicar da presunção de omnipotência e da capacidade de controlo absoluto sobre a realidade. Von Franz (2002) colabora com a psicologia analítica frisando que: “O verdadeiro processo de individuação — isto é, a harmonização do consciente com o nosso próprio centro interior (o núcleo psíquico) ou Self — em geral começa infligindo uma lesão à personalidade, acompanhada do consequente sofrimento. Este choque inicial é uma espécie de “apelo”, apesar de nem sempre ser reconhecido como tal. Ao contrário, o ego sente-se tolhido nas suas vontades ou desejos e geralmente projeta esta frustração sobre qualquer objeto exterior. Isto é, o ego passa a acusar Deus, ou a situação económica, ou o chefe, ou o cônjuge como responsáveis por esta frustração”. Por essa razão, a dificuldade inicial no processo de individuação pode levar a uma rejeição ou indiferença dos outros. Além de gerar um sentimento de impotência diante da força do inconsciente.

Tornar-se si mesmo/a não significa tornar-se perfeito/a, mas pleno/a, completo/a, aceitando tanto qualidades como defeitos. A humildade é um sentimento primordial na gestão desta dinâmica, já que nos relembra a importância de aceitar cada erro, limitação, insuficiência e incapacidade como oportunidade de aprendizagem.

No número de outros passos está o confronto com a Sombra, e o confronto com a Anima/Animus. O estágio final do processo de Individuação é o desenvolvimento do Self. Reconhecida a própria sombra, liquidadas as projeções, e assimilados os aspectos parciais do psiquismo, há um alargamento do mundo interior. O Ego é ainda o centro da consciência, mas não mais visto como o núcleo de toda a personalidade: é o Self que passa a ocupar esta posição central, integrando o material consciente e o inconsciente, e trazendo unidade à psique, a totalização do ser, a sua esferificação (abrundung). Não mais fragmentado desde o interior, espartilhado nas contrições do seu pequeno Ego, o ser está agora capaz de abraçar valores mais vastos.

A psicoterapia tem um papel fundamental no contexto do autoconhecimento, fortalecendo e direcionando o Ego ao longo deste complexo e sensível processo, podendo mesmo afirmar-se que o processo terapêutico é também, de facto, o processo de individuação. Para facilitá-lo, Jung desenvolveu algumas técnicas, nomeadamente, a imaginação activa, o desenho (e as artes em geral) como forma de expressão do inconsciente, sendo uma das mais importantes a da interpretação de sonhos.

[Outras inspirações nos próximos posts]

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