SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 7 - "LAURA NO DIVÃ II"
SONHAR COM LADRÕES
por Carlos MarinhoCapítulo/Tela 7 – "LAURA NO DIVÃ II"
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Há algo dentro de que sente uma certa
falta oculta, repete o psicólogo com um estranho sorriso a modelar-lhe a
posição do charuto: A puta revolucionária
que os homens querem domesticada no silêncio, a hetaira que aprendeu a reprimir
à sombra de vetustos retratos sem graça, sem barulho e sem polémica, pela
gravidade das ordenações matrimoniais, assexuada e passiva, para a ninguém
desagradar, para a todos comprazer. E enquanto ele fala, num súbito alheamento
feliz de criança entretida, a odiosa Vénus levanta-se-lhe do colo e lança-se arredor
com a palpitante frescura de uma gazela em rodopios coreográficos, cantando e espalhando
rosas e lírios cómodo afora.
Estarrecida
no divã, presa de um transe hipnótico, Laura escuta-lhe cada palavra de
sabedoria, fixando-lhe de olhar esgazeado a estranheza do sorriso manso. [Ouvira
falar de pilotos da Segunda Guerra Mundial que haviam morrido de falta de ar
por recusarem máscaras de oxigénio; o efeito, embora lento, não fora doloroso,
antes agradável – muitos deles haviam sucumbido com sorrisos nos lábios. Este é o sorriso de um deles, exclama-se
perplexa, o sorriso de um homem que parodia
a própria morte, como se a não receasse].
E
o psicólogo prossegue, baforando espirais de fumo para as alturas do teto
ficticiamente abobadado por um tromp
l’oeil em tons de aurora: Só o corpo
que é o lembra – ao sacrifício da sua inteireza – pois o que se É não se
entende por metades; só o corpo que É o guarda: enquistado no âmbar da sua
própria ancestralidade – há algo dentro de que sente uma certa falta oculta. E
é pela dor que o corpo a quer desperta. Aqui sentará, misteriosamente atraída
pela incómoda invasão das minhas perguntas, tomando nas mãos a navalha que lhe
dessangrará o veneno da vergonha, até que a consciência transformadora corte inteira
pelas feridas abertas e a refabrique mulher de si mesma, aceitando-se santa e
puta e livre.
Laura
estremece; uma súbita pressão magoa-lhe o abdómen, e um cansaço larga a
alastrar-se-lhe febrilmente pelo corpo. Tudo é sombra e confusão, e até o
Trychnopoly ganha a aparência de um pífaro de encantador por entre as espirais
de fumo.
Este é o salto de fé, insiste ele do alto do seu trono, a travessia
do espelho, o despertar da sua tão desconsiderada Bela Adormecida – acorde Laura, acorde.
Empurrada
pelo abrupto chamamento, Laura puxa-se para os limites do divã e poisa os pés
no chão atapetado. Ali, espicaçadas pelo balanço do charuto musical, as
serpentes da Medusa de Sidon eriçam-se competitivas, disputando entre si uma maçã
vermelha que vai rolando de presa em presa. Mas Laura não admite confusões, e
certamente não tolera o chocalhante atrito que se monta a seus pés. Indignada,
disciplinadora, baixa-se às serpentes e retira-lhes a maçã num gesto brusco. Ao
fazê-lo, porém, percebe que o que segura entre dedos não é o esperado genésico
fruto, mas o 8 tombado da máscara da mulher-sombra.
Ao
levantar a cabeça, percebe que o fumo começa a clarear, e está novamente em
casa, na cozinha – o assado a esturricar-se no forno |
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