SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 14 - "DO DESEJO"
SONHAR COM LADRÕES
por Carlos Marinho
Capítulo/Tela 14 – "DO DESEJO"
| Ali fica, grave e tenso, sedentariamente
esbarrigado na poltrona: um homem de silêncio mineralizado, olhos espipados
para o televisor, numa dilatação fixa de expectativa, sem vírgula alguma que
lhe separe a excitante virtualidade e a aurea
mediocritas doméstica, movendo apenas o pescoço, agora constrito pela engomada
brancura dos colarinhos Hilfiger, quando e sempre que um dos carros de corrida
aperta a ceiture das pistas.
Nos seus braços, Laura sente-se menos
mulher do que um problema a ser solucionado: já lhe não solicita amor sem
sentir nesse pedido uma intrusão na sua agenda nobiliárquica de ser
inflacionado. A vida é, para si, esta merecida poltrona confortável, à sombra
de vetustos retratos sem graça, sem barulho e sem polémica, deliciosamente
represo pela gravidade das ordenações matrimoniais. Ele tema coroa da lei dos
homens. Mas Laura está a transpor a linha invisível que a foi separando de si
própria. Durará para sempre este instante – aqui, no cruzamento entre a cozinha
e a sala-de-estar onde, por momentos, os olhos se lhe ampliam para ganhar uma
acuidade de visão aquilina. Destraça o avental, sobe as escadas e atravessa a
penumbra do corredor. Já à soleira da porta, os dedos avançam para o
interruptor e o volfrâmio zune para descobrir o espaço e a indistinta profusão
de objetos que lhe definem o boudoir.
Sobre a senhorinha azul-da-Prússia o vestido que ele não cuidou, ao espelho, o
corte de cabelo por ele menosprezado. Circunvaga os olhos pelo compartimento:
quer certificar-se de que tudo está devidamente arrumado. Passa ao banho, e ali
adentra-se no duche, aproveitando o fecho das portas opacas para recriar o que
mais se aproxime da concha insonorizada de um bicho em estratégia de defesa.
Vertendo dos orifícios do chuveiro como
da cúpula dos céus abertos, a água agita o mar e, com ele, o governo do bote,
aventurado já, sob tons acobreados e de boa brisa a estibordo, para longe das
areias de Platis Gialos.
Vão ambas em silêncio, Laura tentando
manter o domínio sobre si mesma, entretendo a agitação interior com um sombrio
morder de lábios, e a Vénus remando remando remando, imperturbável, sorriso
iluminado pela corola
nervuda da sua espetacular orquídea de ametistas. Abortar
o processo seria subjugar-se fatalmente à privação que a sufocou toda a vida. É
a última oportunidade de todas as oportunidades que Laura se concede a si
mesma: não pode senão apressar o passo – regressar seria nunca de lá ter saído.
Mas à medida que o inflamado antegosto
da liberdade lhe vai aumentando o dispêndio de energia mental, a exaustão
faz-se iminente, e como
se as manhas químicas de um rápido opiáceo ganhassem efeito pelos corredores
venosos do seu corpo, depressa Laura volta a embaciar num estado de flutuação. Ali, em
alto-mar, ninguém pia um ai, das ondas dorme o peito sem gemer palpitação, e o
lento balanço do bote põe-lhe
ao corpo vagares de soporífica indolência.
Pouco
a pouco, vão-se-lhe fechando os olhos. Não trouxe malas, veio consigo mesma e uma alastrada
ferida aos gritos, quebrada e frouxa. Agora que pára para se rever biograficamente, percebe que o
que traz não é senão aquilo que a impele a partir. Não mais deverá evitar o que
a magoa.
Ao
longe, vê-lhe a brancura engomada dos Hilfiger, o cabelo lambuzado de pomada
imperial, o ar empertigado com que responde ao insultuoso escândalo de cada tentativa
que faça para se emancipar dele. [E tantas vezes rasgou Laura a mesma
carta: «Quanto de ti me não chamará
ingrata, quão pouco respeitosa não acharás a minha atitude. Rogar todo o perdão
que à tua misericórdia lhe não dê cuidado dispensar-me é o mínimo que ocorre
fazer, mas preciso de afastar-me…» até o medo, ministro da morte, lhe
alisar a ruga da insubmissão, e obrigá-la a cerrar mais um oratório de
esperanças].
Talvez de novo cedesse ao medo, ao
grande medo, se o súbito estrondo de uma rajada de vento fortíssimo a não estremecesse
de volta à consciência. Para perceber, enfim, que a sorridente Vénus desaparecera
do seu posto de capitã, e a ondulação do mar se transformara agora numa
corrente bruta, precipitando-se cada vez mais rápida e ululante para Este,
deixando-a por completo à mercê da própria sorte.
Em pouco tempo, o lençol de água,
rugindo fervilhante, começa a rebentar em frenéticas convulsões, silvando em
gigantescos torvelinhos espumosos, e os cobres do horizonte enegrecem
pesadamente por sobre a sua cabeça. A escassos metros de distância, cor de pez,
o mar abre a bocarra de monstro num vasto vórtice de portentoso diâmetro,
puxando ao fundo o bote de Laura.
Entre o tempo e a morte, ela é agora a
única timoneira a bordo, a timoneira do seu destino. E pese o efeito
dolorosamente nauseante da descida, de pálpebras cerradas como numa crise
espasmódica, os lábios murmurando desarticuladas orações, Laura encontra uma
estranha liberdade no terror que a eletriza – a queda no funil do vórtice é já
iminente, é já inevitável. Mas é nesse encontro mano-a-mano com a morte, contra
o jugo que sempre a escravizara, que vem a si num grito de bellator.
Ofegante, incapaz de articular
pensamento, a descarga adrenalinogénica paralisa-a numa quase catatonia.
Só a espaços, quando ao sentimento da
existência mental se lhe acresce o sentimento da existência física, o corpo
começa por falar-lhe aos ouvidos: e são imagens de uma paralisia que lhe vem do
passado, um estar movendo-se sem se mexer,
um querer e um não conseguir, um pai sem gládio, uma mãe forte e cega, as
críticas, o ignorar – a mágoa.
No alambique das estranhas alquimias
interiores, a distância à costa re-estiliza-se agora sob forma de um frio de
não ter havido abraço que a acolhesse e a cuidasse, de uma ferida que desde
longínquos outroras lhe viera contorcendo a fístula da desorientação e
ulcerando-lhe o amor-próprio.
Fecha ainda mais pesadamente os olhos,
preparando-se para o embate, e durante um impreciso número de segundos não se
atreve a abri-los, cada vez mais surpresa por não sentir a derradeira angústia
da queda no Hades.
O tempo passa, e Laura continua viva.
A sensação de queda cessara.
Nisto,
ouve uma voz familiar chamá-la pelo nome: Laura, Laura?
Acordando do devaneio, abre os olhos. À
sua frente, o psicólogo inclina-se para diante, aguardando resposta. É quando percebe que da sua cabeça
começam a espirrar orquídeas, nos mais ricos tons de rubi e ametista, pois sabe agora
que
deve chegar sozinha a terra,
que
pode agora chegar sozinha a terra,
que
sabe agora chegar sozinha a terra
que
quer agora chegar sozinha a terra|
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