SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 6 - "LAURA NO DIVÃ I"


SONHAR COM LADRÕES
por Carlos Marinho

Capítulo/Tela 6 – "LAURA NO DIVÃ I"

| Como um beijo de centelha elétrica, em ondas fumegantes de violência amoniacal, um súbito penetrante cheiro a Trichnopoly vara-lhe o corpo de volta à consciência. Laura estremece numa convulsão de tosse, volteia-se muito a medo, telegrafando pela intermitência dos cílios mal despertos o perturbado morse do estado de confusão.

Tão fustigante lhe chega aos olhos a fragrante névoa tabacina que só a espaços, cautelosamente, pode por fim abri-los.

Um medo anómico rosna baixo, ressentido. Sem discernir coordenadas, tateia arredores para perceber se pode furtar-se ao asfixiante paradeiro. Mas ao estirar a perna em movimento de proa, sente-a inesperadamente pênsil por sobre a vertigem de um abismo ventoso e de pronto a recolhe à protegida abada do apoio das coxas.

É de chegar-se às bordas que a amparam, e de sentir-se contida num súbito amplexo de veludo elástico, que vai relaxando os músculos do transe de hipervigilância, e aos poucos formando mentalmente o acolchoado retangular do divã onde se estira, dele improvisando o santuário de uma ilha de segurança flutuando pelo oceano seco das suas ansiedades.

É quando um rumpf de tosse serena se eleva da odorosa fumaça e todo um modo defensivo se lhe ativa novamente. Com a adaga dos olhos franzidos, Laura procura romper as longas e farfalhudas barbas de fumo para desvelar a identidade da enigmática presença.

A trémulo compasso, dispersam as névoas, e há agora uma nepente de terror a morder-lhe fundo o coração.

Quem é?

Sorrindo para si, pesadamente abacial, o psicólogo está sentado num trono entufado a damascos de Luca, erguido em imponentes esculturas de vulto dourado, cravejado de pedrarias várias, ao pulso um relógio em ouro da casa Barraud, de ponteiros em forma de raio, movendo-se sinistrorsos.

Seja bem-vinda.

No seu colo, em Schiaparelli negro e sapatos de decote largo, poisa como um bibelot caro a Vénus gatuna, toda ninfa, raça e charis, pálida de veloutine, usando o mesmo 8 tombado da máscara negra ao rosto. Atrás de si, na parede, esbate-se a mancha rubra de um quadro em moldura de nogueira, marchetada de marfim e prata, mostrando as Muralhas de Teodósio desde o Mar da Mármara até ao Corno de Ouro, e ao admirar-lhe a precisão dos detalhes, Laura apercebe-se que a imagem vai vertendo para fora dos caixilhos num fio de água silencioso.

Há algo dentro de que sente uma certa falta oculta[1], ajuíza o psicólogo de repente, uma interioridade frágil de que nada sabe ainda, Laura. Carente, adormecida pelo cloral do medo – saberá: a mulher libertária e sexual que a vergonha aos olhos dos demais foi subterraneamente trocando por um sentimento de defeituosidade má e indesejada e inferior. Laura pestaneja, confusa.

Ao fundo do que lhe é dado a perceber, reconhece a teimosa raiva contra o que não foi, pela ordem que um dia mais lhe apeteceu seguir. Cada desencanto é o incumprimento de uma estrela-guia, é a incompletude do seu potencial, o desgaste de um oneroso atraso na cronologia dos desejos, a irrespondida solicitação de mãos estendidas para pais que a não conheceriam jamais.

Sangrava e sangra ainda – mas ninguém via, ninguém que soubesse, ninguém que saiba. Tão depressa é esse ninguém das bocas caladas, esse impreciso algo dos olhos invisuais. Mais dói já a solidão que o amor faltando. Tudo pára, tudo parda, pouco pouso se traz ao passo que não pausa. Quer desaparecer por entre os interstícios do acolchoado: geme o seu ânimo, débil e escurecido.

Aos pés, a carpete com a cabeça assassina de Medusa, e o fumo do Trichnopoly continua a subir, desenhando-lhe em face a figura do marido inclinado sobre os lábios da amante.

Um rápido vislumbre, um jogo de crianças adivinhando a forma das nuvens, sulcando como asas o céu que dele a mantém tão longe. Algo está prestes a começar, e Laura inclina-se para diante como a querer adivinhá-lo antes de saber |



[1] Shelley inTo a Skylark’ [an empty vaunt: a thing wherein we feel there is some hidden want”]

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