SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 5 - "LAURA PELO DESERTO"


SONHAR COM LADRÕES
por Carlos Marinho

Capítulo/Tela 5 – "LAURA PELO DESERTO"

| Da testa tensa do sol ao alto, respinga em baga sobre o amplo tampo do deserto a aspereza de um volfrâmico suor. Rendida à torreira, medula torta de cansaço, Laura vai desvestindo fardagens de pele ressequida, deixando cápsulas ultrapassadas de ecdise pela areia fumegante, doendo, abstraída e langorosa, arrastando a reboque, num invisível esquema de cordéis de marioneta, a sonora e furtacolorida entourage animal, como a um escândalo de carnaval fora de horas.

Em redondo, alongam-se-lhe campos de geografia infiniforme: praga de distância, tudo cinzas cor de carne, indo do nada ao nada, obsceno mapa de despojos – e ela, afeta à simplicidade dos velhos hábitos da devoção doméstica, água de soda e espanador em riste, avança pelos Saharas mais secretos da sua insuficiente solidão, exploradora de esperanças, inventariante de fracassos, à cata expectante de um ou outro oásis, tudo limpando, tudo brunindo, tudo ordenando, fugindo do guizo de cobra do riso da Vénus ladra de homens.

Aqui, onde o chicote do astro-rei lacerou uma súbita imprevista brecha, o promissor clarão de uma asa, a espaços a curva de uma cuba, de repente a boca pasma de uma simples chávena vazia. E soprados os demais papilhos desse mesmo imenso dente-de-leão arenoso, a renda crua da toalha de jantar, as porcelanas chinesas e os Christofle, a travessa em forma de trevo, os biscoitos quadrados e cor-de-rosa, os triângulos de queijo amarelo, o convidado para jantar, a sua postura enfatuada de burguês presunçoso, a calva reluzente, as faces escanhoadas e cor de lagosta, o abdómen inchado, apertando a custo por sob as dobras moles da Lacoste, e ele, o marido, conhecedor dos deveres de um perfeito anfitrião, escutando com ares de quem se instrui. Mais além, o cobre da lata de pó-de-arroz, os ganchos de chapéu atrás da porta, o oleado e o corrimão, o candeeiro de petróleo, os ornamentos, as cortinas.

Só a pegajosidade de uma última mancha arenosa parece persistir por entre as linhas perfeitas da sua monótona vivenda suburbana. Laura insiste, fazendo deslizar o couro macio embebido em água de soda contra a superfície dura do enigmático resistente.

Algo está agora na iminência de ocorrer: do outro lado – mistério! –, uma figura secretamente armada regula, com paciências de maestrina, um círculo de mira telescópica; ao títere de semelhante gesto, por longos fios de determinação fatalista, unem-se propósitos inimagináveis para quem assim a visse: a camisa em folhado evasé surdindo alva pelas alças do avental, cegamente empenhada no mister de serviçal do mundo, sem que nada houvesse de impremeditado na forma como a outra agora ajusta o arqueado da coronha ao côncavo da axila e se lhe fixa o alvo pela luneta.

Alheia à precisão destes mecanismos, Laura alisa a ruga preocupada das frontes em fogo e um sorriso franze-lhe a comissura dos lábios: sob pressão de perfecionismo, a crosta molifica e desagrega-se, mas quando por fim se lhe revela em face o espelho églomisé da vanity, o gatilho é pressionado, o cão percute o fuzil e a bala deflagra-lhe pelo cano dos olhos – assim distingue, num rito de choque, o reflexo de uma outra mulher, uma outra sombra, a mesma gargalhada de escárnio, corpo de Vénus Eucarite, todo curvas e serafina, desamuralhado num deshabillé de matin cor das Rouge Royale, cingindo aos olhos o 8 tombado de uma máscara secretista.

Hiperdinamizada pela afronta do falso reflexo, quer pontapear o roubo da insolente ventriloquista, lançar-lhe cães aos calcanhares, agarrar-lhe em fúria a medusa negra dos cabelos negros, mas o tónus muscular recusa-se-lhe acudir à necessidade.

Em torno, ao invés, a basta cabeleira cresce esperpêntica para enfaixá-la como a um pé de chinesa, imobilizando-lhe os gestos de intervenção, tapando-lhe as narinas e a boca, constrangendo-lhe os pulmões.

E nessa aflição de irrespirabilidade, sem oásis que a refresque, o corpo cede ao plaino do imenso deserto, e Laura desmaia de adoecer mais fundo e mais longe de todos, por sob a torreia da avassaladora solidão |



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