SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 3 - "PASSAGEIRO PARA MÍKONOS"


SONHAR COM LADRÕES
por Carlos Marinho

Capítulo/Tela 3 – “PASSAGEIRO PARA MÍKONOS"

| E na raiva do despeito, espasmando a repelões, enrodilha-se-lhe à carnadura dos braços nus um espiralar chocalhante de cascavéis, de rubinegras corais, e de najas assobiantes, devorando-se mutuamente e indiferenciadamente: súbita promiscuidade ofiófaga, as presas em riste enlaçando-se entre si, histericamente competitivas, parodiando o esplendor da carnificina. E deste comércio de sangue e veneno, a doentia parálise do tónus muscular, a vertigem que cega e que a enlouquece, enervando-a até ao desequilíbrio.

Carne adentro, espalha-se-lhe em fúria a peçonha da Medusa, ganhando velocidades de comboio para os secretismos da sua intimidade corpórea, penetrando em agudez de seta a carne flébil de cada órgão, impregnando cada tecido, epiteliais, conjuntivos, musculares e nervosos, vazando para a negrura dos interstícios, ensopando pulmões e rins e fígado e intestinos.

E crescendo pletórica, sem contentor que a retenha, extravasa já de volume, não cabe toda na sua interioridade, vai subindo pelos canais da pele, a gritos procurando redutos de vazante, vertendo a vómitos pelo redondo glandular dos poros, tomando-a como Alice submersa nas próprias lágrimas, dentro de uma cuba de água calda, aquário ao talhe de caixão, onde agora bóiam Paros e Naxos e Míconos, castelos de espuma abaunilhada, ao redor dos seus joelhos de triste Mnemósinea. Pobre Laura, do arquipélago dos seios à proeminência estomacal, improvisa no lençol aquoso um tabuleiro para o Tarot das suas solitárias consumições.

Vê-o girar calcanhares, ao marido, doido enfeitiçado, correndo atrás da sombra fêmeaforme da outra, mulher-sombra, e ao espelho a espessura transparente da familiar montra de farmácia onde, em jovem, nas parisienses «Pílulas Orientais» comprava a promessa de seios maiores. Ao lado, e justo ao lado, a agência de viagens, de onde o vê sair com uma passagem para Míkonos na boutonnière, por entre as pétalas da flor artificial de japoneira. Quer acompanhá-lo, pois que sobre a espinha lhe pesa a cruz da autoimposta obrigatoriedade de agradar. mas a parálise do veneno é forte, e a travessia de barco atemorizante. Fica em terra, e de mais derramadamente chorar as tristezas da sua incapacidade, vai ao fundo, sem salvação – Alice cumprida, perdida, anulada |

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