SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 2 - "A MULHER-SOMBRA"


SONHAR COM LADRÕES
por Carlos Marinho

Capítulo/Tela 2 – “A MULHER-SOMBRA”

| Fundo e em ziguezague cresce como um signo a depressão do estilhaço pelo rosto de Laura. Nenhuma máscara lhe pode já dissimular o vexatório sofrimento.

Sem pestanejar, do olho torto da fratura – aberto em «O» pela bala perfurante da frustração –, emerge agora, gritando em carne-viva, a primeira escuridão do seu secreto subterrâneo, a primeira noite dos bastidores de funcionária excelentíssima.

Assim exposta à luz fosca de uma casa enlutada, negras anatomias insectiformes vulcanizam uma procissão rastejante, tímidas e viscosas, para o exterior do peito, babando o limbo aguçado da grande racha, pingando o magma negro sobre os móveis decrépitos, alastrando-o pelo linóleo, enlaçando-o às serpentes unidimensionais da cabeça de Medusa bordada a oiro na tapeçaria de Sidon.

E quando passa em gritos de carpideira, pondo crepes de luto solidário pelo trilho afora, murcham-se-lhe as farfalhudas flores do vestido, engrossam-se as corolas em nódulos de sombra, espreguiçam-se as sombras em descampados fantasmas de tão sozinhos. Um a um, vão-se debruçando trémulos os dedos tristes da meia-noite para agora cerrarem as pálpebras à terra: já nada nela freme, já nada nela se rebela, no seu rosto atónito, ministra do medo, alisa-lhe a morte a derradeira ruga de insubmissão. Pela janela, ninguém chora na cidade: todo o seu alto crepitante protesto é já lisura aturdida e dó de vexação.

Rindo alto, há um caroço de silêncio atravessado pelo lume na garganta das matas escuras. E ninguém pia um ai, dos montes dorme o peito sem gemer palpitação, a sós com a sua alastrada ferida aos gritos, quebrado e frouxo até à parálise do vento: vergado pela humilhação do fogo, o nervo tenso da esperança de Laura afrouxa em cinzas, fumegando na escuridão.

E todo o céu a horizonte, rondando-a em vigilâncias de abutre, é também a sombra maior do perfil dele, do marido, belo e incendiário, cobrindo-lhe a extensão da pele com mordeduras criminosas.

Só uma escuridão maior se lhe parece manter oculta por detrás da ameaça de gigante. Laura vacila, traçada por um repentino arrepio de revelação, morfina alguma lhe serenaria o pulso precipitado. Na boca espalmada da Medusa, há um borrão de sangue sem arrependimentos calando o segredo

…de uma Vénus gatuna.

Aos poucos, com a última estrela em alinho cósmico, confirma-se-lhe a profecia, e Laura sabe-o sem dúvidas.

Uma silhueta de mulher avança do escuro, rindo com estridência, uma espetacular orquídea de ametistas abrindo a corola nervuda na lapela do coração, maçã de Eva às mãos, ateadora de fogos e de corpos, e no pescoço dele, a vampiresca marca do seu estranho feiticeiro batôn de excessiva fêmea até à medula.

Anda um Bórgia de tacões altos pela extensão dos seus domínios |


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