SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 1 - "E ENTÃO, QUEBRAMOS"



SONHAR COM LADRÕES
por Carlos Marinho

Capítulo/Tela 1 – “E ENTÃO, QUEBRAMOS”

| E os amantes que o já não são, aqui estatuificam juntos: artefactos menores da solidão doméstica, regimentados lado a lado – no recôncavo confortável do seu sofá de espáduas altas, bordado com ramalhetes de margaridas e fleurs de lys; funcionários de museu, da exangue euforia apaixonada, encolhendo à sombra de vetustos retratos –sem graça, sem barulho e sem polémica –, represos marcialmente pela gravidade das ordenações matrimoniais: homem de silêncio mineralizado, rebelde à súplica, colete de gola alta forrado a minhonete, gravata em duas baterias e flor artificial de japoneira na boutonnière, o cabelo lambido de pomada imperial; e Laura, mulher-calada, afeta ainda, por saudade e por miséria, ao tão sonhado véu do seu já tão longínquo noivado, tendo no avental florido a pele que em si conhece segunda, quebrada sobre o horóscopo aberto no tampo marmóreo – nunca é bom dia quando Marte ativa a quadratura Úrano-Plutão.

Com a ferrugem das panelas e batedeiras e funis e passadores, irrecuperável de tão para dentro, descora-se-lhes a três tons o coração de amante, bocejando já sem os desconcertos arrítmicos do entusiasmo, num mano a mano de lábios entreabertos, chegados hesitantemente à ânsia da derradeira confissão, ‘já não te amo’, parados sem dançar, ensurdecidos contra o grito dos arautos do fim. Na ponta do não-dito, a tragédia do apocalipse afetivo permanece anómica para ambos.

Mas em redondo, a casa arfa em histerismos de tristeza, e há embotamentos de cansaço trepando-lhes ao assalto dos olhos, substituindo-lhes o fulgor das surpresas de outrora pelas pequenas mortes da rotina. Ao fundo do casarão, como do olhar de córneas blazé e dos copos vazios de Hendrick, riscando o verniz fino das suas melhores intenções, aqui se lhes quebra ao espelho a ruga funda da desilusão, aqui, lasca a lasca, se lhes esboroa a ambos a porcelana fina das mais íntimas necessidades animais.

Agora, no funcionar de bonecos desconjuntados, vincam-se pela dobra do hábito, obsessões de invariabilidade, e do nascer ao pôr-do-sol, sem percebida gradação que distinga dia e noite, tudo são expressões tensionadas de tédio, a que o espanador não oferece ajuda.

Um a um, vão-se fechando no escuro da moradia, os múltiplos oratórios espanhóis a que tão ardentemente foram pedindo que para sempre se lhes mantivesse o mistério, que para sempre os inquietasse o medo de perderem interesse, que não esquecessem jamais o espanto de ser-se e o encarniçado que é desejar-se.

Mas do jardim, onde nenhuma flor prende já cheiro e luz ou orvalho, o mundo repete-se-lhes inexpressivamente na mesma pressa de roda para nenhures.

E há então muito interior em ambos, de ambos se lançarem para o longe das suas meditações, questionando que argumentos sustentarão as intrusivas investidas da realidade no contramundo da defesa que vão montando contra o perpétuo desprazer da sua quebrada conjugalidade.

Porque pelas relvas, Laura intui, há uma cobra Jezabel que se move devagar |

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