SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 4 - "LEÕES E TIGRES E ZEBRAS E MUITOS OUTROS ANIMAIS"
SONHAR COM LADRÕES
por Carlos MarinhoCapítulo/Tela 4 – "LEÕES E TIGRES E ZEBRAS E MUITOS OUTROS ANIMAIS"
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Acordou. Nenhum garrote lhe estancaria as veias abertas da escuridão.
Opressa
de nervos, sob o império de uma atmosfera asfixiante, Laura chega aos
parapeitos da lucidez, as unhas roxas de tanto arranharem o vidro das janelas do
vácuo, seus lábios perdidos em múrmuras balbuciantes interjeições de desvairada,
de transe semiexangue de doença dos trópicos, tentando em vão amortecer o riso que
dentro e fundo lhe ressoa em eco de todas as proveniências, escalando em
escárnio e prepotência, todo centrífugo na crueldade, repetindo-lhe pelas faces
caleidoscópicas do cérebro febril, numa aversão furiosa e debilitante, o
fanático retrato-robot da mulher-sombra.
Pobre
Laura, animal assustado, o choque da traição acorda-lhe um estado de cautela ruminativa,
hipervigilante a qualquer movimento em falso, interno que o seja ou externo, e sem
intencionalizá-lo, ramifica já a teia do engano em amplitudes de conspiração coletiva.
No paroxismo da sua angústia, é uma constelação de olhos esparsos a esbranquiçar
no escuro, estalos de pólvora agressiva que agora tornam para si uma fixidez
sinistra de ponta de lança, avançando na sua direção com ameaçadores prenúncios
de malignidade.
Larga,
como presa possessa, cortando o mapa dos descampados mortos da tapeçaria de
Sidon, fugindo da tribo que tem à perna, aos ziguezagues pelo caminho desvertebrado
da sua confiança perdida, suando, a custo respirando, as fontes batendo com
violência, da podridão das raízes queimadas aos espessos matagais humedecidos, revendo
no inventário dos seus defeitos o móbil da sua insuficiência, tentando
distinguir germes e ovos, doença e razão, morte e vida, tropeçando chorosa nas
farfalhudas flores de sombra do vestido, penetrando estranhas galerias de
verdura epífita, entrançando lianas aos cabelos, sob chuvas licorosas de
perfume telúrico, procurando as coordenadas do seu extraviado encanto.
E
intrigados pela fúria da sua pressa, vão-na seguindo macacos e zebras, e sapos
e jibóias e preguiças, como porta-machado de muitas penas, e a estes seguem-se leões,
cobras, antílopes e elefantes e tigres e aves-do-paraíso, formando às costas do
seu improvável cargo de líder omnipotente uma bizarra traîne zoológica com quilómetros de extensão. Mas não, ela nada
sabe sobre destinos, ela nada descobriu sobre percursos. Prolonga tendões para
a distância, atravessando geografias ruidosas, e vai-se desgastando no afã da
procura, até que exausta e de peito arfando, sob a nudez esfolada dos pés
perdidos começam a escurecer as areias de um deserto cor de Rheno opalizado |
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