SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 8 - "UM RENDEZ-VOUS DE SONHO"
SONHAR COM LADRÕES
por Carlos Marinho
Capítulo/Tela 8 – "UM RENDEZ-VOUS DE SONHO"
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Noite escura: Laura atenta, tudo escuta.
Zune
o vente, range a escada, e ele volta: discreto, secretista, com a tenuidade do
ladrão astuto, ponderadamente calculado para se lhe não acusar presença. Levanta
a onda fria dos lençóis, reintroduz-se cama adentro, ocupando a privilegiada
cuba do seu espaço singular. Invisível e dura é a alfândega que os separa.
Na
outra ponta, dessangrando lágrimas sem som, Laura permanece imóvel, o rosto
esmagado contra o plaino do colchão, contando sem numerar os carimbos
desbotados de um castelo de valises
erguido junto à porta – Milão, Madrid, Chicago, Paris, destinos que lho
roubaram para a lonjura de um passaporte itinerante. E ao percorrer com
displicência o planisfério de cada um desses pequenos mundos paralelepípedos
portáteis, trava-se a súbitas num sobressalto – o reconhecimento da inesperada
familiaridade. Franze os olhos à porta do sonho.
Aquele
é o azul do mar da Mármara, tal como o vira bordejando as Muralhas de Teodósio no
quadro por detrás do psicólogo e da Vénus em Schiaparelli. Por momentos parece-lhe ouvir um apito de vapores
deslizando arfantes pelas suas águas, sentir a humidade da bruma mística das
colinas de Pera e de Bizâncio deslizando até à avenida líquida do Bósforo, ao
atiro da Ayasofya veneranda, dos minaretes
e das cúpulas das mesquitas, dos terraços e mausoléus de Istambul, projetando-se
no céu irisado em tons de fogo.
Avança
pelo ancoradouro da velha Constantinopla, lançando-se a calcorrear com
curiosidade o congestionado ziguezague de ruelas e cangostas, com o zunido da
multidão imensa crescendo à sua volta, ouvindo por entre todos os estrépitos da
farrusca «Metrópole do Esplendor», o fio de seda das notas cantantes de uma
flauta em legato de turva serpente.
Acariciante,
o som metamorfoseia-se a espaços numa voz de prece, e a voz em múrmuras
ordenações de hipnose, quebrando-lhe os gestos, detendo-a em pleno Kapalıçarşı,
todo barulho e movimento, até que os refluxos apressados a empurram para uma
viela escura, abrindo caminho aos encontrões, sempre em frente, passando por
diversos pátios e arcos, até chegar a um recesso circular, azulejado a
cor-de-rosa e amarelos, com duas laranjeiras e uma roseira ao centro.
Nada
particularmente estranhável e, ainda assim, um instinto de presa seguida fá-la
experimentar a inquietação crescente de uma sensação de ameaça. É quando a
Outra lhe chama pelo nome. Por acaso não
tem lume?
Laura
retrocede dois passos e aponta o dardo agudo da vista curiosa para a rosa mais
vermelha do pátio inteiro. Aí estira a Vénus gatuna, a amante do marido, ousada
no seu lascivo desplante, ao comprido de uma espreguiçadeira de lona, chapéu
cónico verde-alga sobre a cabeleira negra, um par de óculos em forma de
borboleta caídos à cana do nariz retroussé,
segurando entre o indicador e o dedo médio, o cilindro extralongo de um
Marlboro. Deixei o isqueiro lá em cima,
justifica apontando para o hotel.
Laura
aproxima-se devagar, enquanto abre a carteira. E não é sem um frio de repulsa
que lhe nota a expressão blasé no iriçado
a rímel das pestanas semicerradas, completamente alheia ao seu esforço. Intolerável, remorde Laura de si para si
mesma, enquanto desprende um pequeno fósforo rosa da carteira de fósforos, Absolutamente intolerável. Não poderia
nunca conter toda a raiva contra a depravação daquela filha do deboche.
Impulsivamente,
avança sem pruridos de finura: Está
ciente de que ele é tudo para mim, não está? A Vénus começa por gelar numa
imobilidade total. Por fim, ergue um sorriso trêfego, passa a língua pelos
lábios tingidos a Rouge Royale, e retruca fitando-a não a ela mas a um qualquer
ponto acima do seu ombro, como se em vez de se dirigir a Laura se dirigisse a
um espírito familiar. Minha
querida, acredite: homem algum valerá toda essa preocupação, e
desata a rir sinistramente, uma gargalhada horrível, subindo e espalhando-se num
crescendo hiperbólico de loucura por todos os lados.
O desconcertante à-vontade da detestável
plaisanterie obriga a interlocutora a
recuar um passo. Embora tivesse aproximado o fósforo aceso à ponta do Marlboro,
a Vénus não se move, ficando Laura petrificada enquanto o fogo lhe consome o toro
do fósforo, se lhe pega aos dedos da mão, ao braço, ao cabelo, ao corpo todo.
E como condenada bruxa à tórrida
verticalidade da estaca, parece-lhe que uma multidão de apupos se lhe reúne
agora em torno, condenatória, enquanto a gargalhada da outra ascende em
sonoridades vitoriosas.
A súbitas, toda suor e palpitações, Laura
acorda do seu sonho |
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