SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 13 - "À PROCURA DE ÁGUA"
SONHAR COM LADRÕES
por Carlos Marinho
Capítulo/Tela 13 – "À PROCURA DE ÁGUA"
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De chofre. Acorda. A aldraba de latão polido ribomba contra o plaino da placa do
batente.
Pronto
para a última prova, o vestido verde-água-do-Nilo vem embrulhado debaixo do
braço da modista, junto à bolsa de seda, contendo uma fita métrica, uma
almofada de alfinetes e um par de tesouras. O
que acha?
Laura
afasta-se três passos do miroir sur pied
para melhor apreciar o impacto do modelo Lavanelli, e depressa se lhe aflora à
comissura dos lábios um sorriso de agrado narcísico.
Sublime – simplesmente sublime.
Assim
que a costureira sai, deixa-se cair no tamborete que entesta o espelho églomisé da vanity, traça duas pinceladas de sombra peach pela superfície convexa das pálpebras e uma de batôn Rouge
Royale pela grossura da boca. A súbitas ocorrem-lhe as palavras do psicólogo: Aqui sentará, tomando nas mãos a
navalha que lhe dessangrará o veneno da vergonha, até que a consciência
transformadora corte inteira pelas feridas abertas e a refabrique mulher de si
mesma, aceitando-se santa e puta e livre.
Agora,
encorpando-se Vénus Eucarite, é mais ela própria: toda ninfa, raça e charis, o peito reteso em dois globos
de fruta verde, a pele luzindo alabastrina, nas mãos o império sobre os homens, a concentração de todo o fémino magnetismo a
que por longos anos se foi negando. E hiperdinamizada pela renovada beleza, trata-se como bibelot caro,
sai de saltos-altos pela cidade, passeando-se pela avenida das mais dispendiosas
devantures, mimando a pele com jóias
e óleos perfumados, comendo, das entrées à
sobremesa, apenas o que de melhor e mais exótico ofereça o cardápio, e os livros,
esses lê-os em éditions de luxe, para
cultivar-se em estilo.
De
passo, amaldiçoam-na as mulheres raivosas
pela ousadia do seu lascivo desplante, criticando-lhe o feiticeiro batôn de excessiva fêmea até à
medula; os homens, levados no transe de uma flauta em legato de serpente, chamam-na ateadora de fogos e de corpos, seguem-na
pelas dobradiças de qualquer esquina, entufando uma sonora e furtacolorida entourage. Mas por todos Laura passa impenetrável, segurando entre o
indicador e o dedo médio, o cilindro extralongo de um Marlboro, no rosto a
expressão blasé da sua indiferença.
Eis
então que ao passar pela montra de uma agência de viagens reconhece na cara de
um flyer promocional o azul-VanGogh
das águas de Mármara, e ali se detém bruscamente para estudar a proposta de uma
Míkonos à distância. Esta, pensa para si mesma, é a Grécia da lonjura maior, de
quanto medo a tem separado da confortável securização familiar, de quanta
ansiedade a tem tresvariado, este é o desafio, esta é a derradeira prova de
fogo à sua autonomia.
Mais
abaixo, em traje marujo, jaqueta azul e branca, boina descaída sobre as
frontes, a Vénus ferida vem esperá-la, no interior de um bote acostado às
areias de Platis Gialos. Laura apressa-se de regresso a casa.
De desfalecer na carestia, dissera o psicólogo, esta terra não é boa, esta terra não dá
frutos. A espaços, porém, há com a tardante chuva de outubro, a luminosa
interceção de uma futura sementeira: que o alvor de outras jornadas para sempre
subirá a sina de um lugar, e na terra que hoje morre para o despobramento da
alma, com a preciosa demora da paciência, há-de a primavera pôr folguedo na voz
e na mão que tudo reconstrói. Deve
partir: Alice cumprida, perdida, anulada, não mais. Este é o trigo que
fecundará, esta é a vitalha que de novo lhe dará vida campos fora – a
esperança, a esperança.
Ao
longe, a sombra do marido, como a de um velho pecado, vai-se alongando
ameaçadoramente por sobre as águas, agitando-as |
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