SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 10 - "HERA, AO LONGE"
por Carlos Marinho
Capítulo/Tela 10 – "HERA, AO LONGE"
Faz-se prestes de pressionar o gatilho, quando o bote colide contra a ara rochosa onde os marinheiros se ajoelham para adorar a pérfida sereia. O impacto é instantâneo: Laura desequilibra-se e tomba para trás.
| De novo em sonhos, a comando do homem
de Trichnopoly à boca, sai-lhe a cabeça em arco das águas de Mármara, respingando
da cabeleira encharcada profundas manchas violentas de um azul-VanGogh.
Soluça
ainda, hiperventilando, as mãos ao peito aflito, procurando apaziguar-se, agarrada
ao debrum de um bote flutuante, expelindo dos pulmões as agrestes salinidades
do denizi.
Em
traje marujo, jaqueta azul e branca, boina descaída sobre as frontes, mas
conservando ao pulso o relógio dos ponteiros sinistrorsos, o timoneiro rema-a calmo,
para a distância, baforando o habitual borrão de fumo fragrante, até ao corpo
lhe regressar a desejada bonança.
Quem tão ferozmente a criticou? pergunta o psicólogo com o mesmo
estranho sorriso de parodiador da morte. Quem
a terá ignorado em momentos importantes? Quem a terá magoado tanto para assim acolher esta vergonha de si mesma,
este sentimento de defeituosidade interna, má, indesejada, inferior, inválida?
De onde, Laura? De onde este medo de
desagradar aos outros, este desejo de agradar aos demais, de se fazer
corresponder às suas expectativas, mesma a expensas das suas necessidades? Não
saberá que toda a dor resulta da
violência que exercemos sobre nós próprios quando permitimos que a nossa
realidade se subjugue as imposições do que nos obrigam a ser?
Grande
é a água toda, assustadora e linda, subindo ao céu mediterrânico num esforço de
totalidade. Laura reclina-se alinhada com a fusão de azuis, meditando sobre as
questões do psicólogo; ao largo, para que a pele respire oxigénios mais puros, bóiam
– de sa gre gan do se – os círculos excessivos do make-up, o nanquim das pestanas, a veloutine da garganta, o bistre das olheiras, e as parisienses
«Pílulas Orientais» para aumento dos seios.
Mas
atenção! – há ao longe uma rocha súbita portadora de alvoroços: nela poisa a adulterante
filha de Achelous e Terpsícore, sua inimiga figadal, o peito reteso em dois
globos de fruta verde oferecidos à mordedura do desejo, a pele luzindo
alabastrina, erguendo a voz em melodia encantadtória para um semicírculo de ébrios
marinheiros pedindo bis entre tarraçadas
de gin e de genebra.
Sem
se erguer da trave onde repousa a cabeça, Laura fixa-lhe a curvilínea cauda de
sereia e admira-lhe o lantejoulado de escamas preciosas, estranhando o maior
controlo sobre a costumeira raiva. É quando o curandeiro do leme lhe aponta a
horizonte as costas escuras de Míkonos.
Esta,
diz para si mesma, é a Grécia da lonjura maior, de quanto medo a separa da
confortável securização familiar, de quanta ansiedade a tresvaria pois que, por
centímetro, cada pedra traz ali a cicatriz de um passado de saques a sangue.
É
quando ao fundo distingue a familiar silhueta do marido passeando alegremente pela
Enoplon Dynameon, mas em lugar da
Vénus topa-se-lhe outra figura: uma mulher alta, de porte majestático, toda
Hera de medula, o rubro inchado de uma romã trincada na mão direita, a traine de um longo vestido de penas de
pavão na esquerda. É o bastante para que se lhe soltem as fúrias a bordo, e numa
explosiva imprecação de profundo rancor, ao rubro do maior despeito, Laura se
amesquinhe a chamá-la feiticeira.
Sabe,
intui-o: essa Hera não é senão uma engenhosa sombra-chinesa da própria Vénus, um
seu avatar menor, um mero fantoche virtual desenhado à medida das suas
inseguranças para melhor enganá-la. Não,
a perversão desta mulher não conhece limites, assume interiormente.
Levanta-se,
debruça-se com avidez de fuga para puxar âncora às águas paradas, impelida por
forte impressão de repugnância.
Mas
ao invés do esperado instrumento náutico de metal pesado emerge antes um
revólver – Taurus, modelo 605 –, cujo cabo toma para as mãos trémulas de
surpresa. Ao desejo de abatê-la assim respondem milagrosamente as
circunstâncias, juntando-se-lhe por fim os transgressivos meios. Prurido algum a
demora em ruminações morais: tamanha é a ambição de provar-se superior às
trapaças da Vénus, que a tudo se cega, firme na sua mágoa, apontando o revólver
às costas da Hera, semicerrando o cenho para afinar pontaria.
Faz-se prestes de pressionar o gatilho, quando o bote colide contra a ara rochosa onde os marinheiros se ajoelham para adorar a pérfida sereia. O impacto é instantâneo: Laura desequilibra-se e tomba para trás.
Tem
apenas tempo de perceber a críptica faísca benévola no sorriso satírico do
timoneiro, antes de bater com a cabeça na trave e resvalar para a inconsciência
de um desmaio |
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