SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 15 - "O BATÔN DE MEDUSA"


SONHAR COM LADRÕES
por Carlos Marinho

Capítulo/Tela 15 – "O BATÔN DE MEDUSA"

| Ajeitando ociosamente as melenas da cabeleira, Laura senta entranhando vestígios de veloutine na brancura do escultórico pescoço de diva, enquanto as inchadas curvas de mulher plena lhe entufam a crisálida de um vestido charmeuse de seda verde-água-do-Nilo.
Do lado oposto, o psicólogo sorri.

Saindo a tímidas espumas desse impreciso recesso límbico, onde aos apuros da sua dúvida de ser foi somando o heróico esforço das mais inanes esperanças, veio vivípora e trintagenária, salgada até ao osso por batismos oceânicos, recolhendo devagarinho ao porto recôncavo das minhas mãos de zeloso parteiro, devolve-lhe ele no seu eterno sorriso satírico, e ao galho, de palhinha em palha, por sua cabeça aqui fez ninho, para então se virar do avesso e se parir novamente, renovadamente, às suas próprias custas. À hora certa, entestando-nos gémeos, fez-se meu corpo água, para que nele pusesse a nado cada proa que o desejo lhe eriçasse, para que na liquidez da sua superfície de espelho recordasse a audácia das suas sequiosas armadas à conquista do mundo, e nelas o seu poder de mulher antiquíssima, descendente de féminos demiurgos, para que à bolina à boleia do vento se enfunassem velas para o interior dos seus olhos de oceano cristalizado.

Divertida, Laura relaxa contra o acolchoado do divã, ergue um sorriso trêfego, passa a língua pelos lábios tingidos a Rouge Royale, e encara a espetacular orquídea de rubis e ametistas aberta em nervuda corola na lapela do coração.

Esta sou eu, diz de si para si mesma, do espelho églomisé da vanity à montra dos talhos e das pastelarias: subida ao zénite, superior, heróica, adrenalinogenicamente orgulhosa de mim própria.

Encarando-se total, Laura desabrocha, enfim, liberal e frutuosamente libertina, flor de todas as estações, num conforto de autónoma securização – aqui, não mais a falta oculta a esvaziá-la em cubas de agonia, antes uma percebida presença maiúscula, que é a de se conhecer a si e de se aceitar em toda a sua furtacolorida entourage animal interior, macacos e zebras, e sapos e jibóias e preguiças, e ainda leões, cobras, antílopes e elefantes e tigres e aves-do-paraíso.

É o contraste, é a dualidade, é a oposição, é a ambivalência, é o titânico, é o divino, é o terrestre, é o celeste, é o real, é o ideal, é o feminino, é o masculino, é o consciente, é o inconsciente, é existencial e é o transcendente – uma totalidade prolongando tendões para a distância, ganhando velocidades de comboio, atravessando geografias para lá da Dimensão, conquistando cada marco, Milão, Madrid, Chicago, Paris, cada quilómetro de terra que vença, espasmando a repelões, insurgindo-se contra toda e qualquer forma de opressão sobre si, mulher até à medula, crescendo pletórica, sem contentor que a retenha, extravasando já de volume, não cabendo toda na sua interioridade, subindo pelos canais da pele, a gritos procurando redutos de vazante, vertendo amor pelo redondo glandular dos poros. O amor que a entrança, em sonhos, à Vénus Eucarites, professora de totalidades, machado de humildação a que aqui, estirada no divã, sob a abada do seu psicólogo, Laura fez chegar o pescoço do seu ego mais doente.

Mas diga-me cá, remata a súbitas o psicólogo apontando para o objeto que ela poisa no regaço. Por que tem estado a segurar, ao longo da nossa consulta, essa âncora que traz nas mãos?

Laura repuxa o queixo para o peito e encara, num sonoro «O» de surpresa: o revólver Taurus, modelo 605, que enclavinha entre dedos, e que pela última vez vira no boudoir da Vénus.

Entende agora de amores e de necessidades.

Não é uma âncora, explica ela com determinação.

Entende agora de dependências e de enlaces tóxicos.

Não é mais um problema a ser solucionado, mas uma mulher rompe e rasga, de pólo a pólo, indestronável; não mais tolerará solicitar afeto e sentir nesse pedido uma incómoda intrusão na agenda nobiliárquica de quem quer que a abjure.

A vida é, para si, mais do que uma poltrona confortável à sombra de vetustos retratos sem graça, sem barulho e sem polémica, represa pela gravidade das ordenações matrimoniais de uma conjugalidade quebrada.

Laura acaba agora mesmo de transpor a linha invisível que a foi separando de si própria – aqui, no cruzamento entre a cozinha e a sala-de-estar onde, por momentos, os olhos se lhe ampliam para ganhar uma acuidade de visão aquilina. O televisor ligado, em dilatação muda de expectativas, vê-a puxar sem remorsos o aço frio do gatilho.

«Quanto de mim te não chamará ingrato. Quão pouco respeitoso não acharei a tua atitude. Rogar todo o perdão que à minha misericórdia lhe não dê cuidado dispensar-te é o mínimo que me ocorre fazer…».

Um estrondo de tiro faz fremir os oratórios, como ao grito dos arautos do fim.

Epílogo

Não mais anómica é a tragédia do apocalipse afetivo entre ambos. Laura sorri. Insinua-se-lhe pelo espírito um estado maravilhoso de prolixidade, de difusão, de extravasamento – um belo estado de emergência que lhe agiganta a alma e a sintoniza com o universo das infinitas possibilidades.

Grave e tenso, o marido descai, constrito pela brancura engomada dos colarinhos Hilfiger, de barriga para baixo, com um braço estendido e o outro, dobrado, suportando o peso do corpo inerte, de cujo lado esquerdo se alastra agora uma mancha cor das Rouge Royale.

Ela aproxima-se para tomar-lhe o pulso carotídeo e vê a mancha deslizar, desde a ponta do não-dito, chegando agora sem hesitações à derradeira confissão, num sulco cada vez mais escuro, até aos lábios da Medusa:

Sou uma Mulher |

FIM

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