SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 11 - "UM FIO DE SANGUE"
SONHAR COM LADRÕES
por Carlos Marinho
Capítulo/Tela 11 – "UM FIO DE SANGUE"
| Acorde,
Laura – acorde. O som áspero de fósforo raspado em lixa. O arrepio rápido do
atear da chama. Um aroma crescentemente xaroposo a nozes e a ameixas. Laura
remexe-se perturbada: vem a si em dores fortes, bruscamente, sentindo-se
deitada de costas contra a rijeza horizontal de um colchão de molas de aço – e,
no entanto, por entre a fímbria fina das pestanas glutinosas, percebe pelo pano
persa que recama os muros do cómodo, pela ampla consola em Carraro da lareira, pela perfumaria Atkinson no toucador em mogno, e pelo candeeiro de braços que
aquele quarto não lhe pertence; nisto, uma sensação de inevitável ameaça vem
constranger-lhe a caixa torácica.
Olha em volta.
Não está só.
A vista amplia-se-lhe quando um fluxo
adrenalinogénico lhe acorre ao coração por ver que ali pára, subida ao zénite de
toda a fémina flamejância Rouge-Royale dos lábios carnudos – superior, heróica,
indestronável –, a Vénus gatuna ela própria, esplêndida, ajeitando ociosamente as
melenas da cabeleira negra, entranhando vestígios de veloutine na brancura do escultórico pescoço de diva, enquanto as inchadas
curvas de pecadora lhe entufam a crisálida de um negligé peach em seda
chinesa.
Consegue
ouvir-me?
Amodorrada entre lençóis e almofadas,
Laura pestaneja muito vagarosamente, pressionando as pálpebras a cada batimento
como se quisesse, negando, espantar a indesejável presença. É só quando o olhar,
invejoso árbitro de estéticas alheias, se lança em percurso descendente para
melhor avaliar a inteireza da outra, que a súbitas dá fé do revólver poisado sobre
a superfície de uma arca em ulmeiro preto, aos pés da cama.
Trate
de beber isto, avança a outra chegando-lhe uma
tulipa de Darroze, recém-aquecido, aos lábios secos de convalescente. Movida a
medo, as narinas fremendo de raiva, Laura resiste-lhe afastando um embirrado queixo
para a distância. É apenas brandy, sossega
a inesperada cuidadora, batendo o pé no chão. Precisará de toda a substância que lhe assistir para curar essa concussão.
Laura sustém-lhe a mirada. Depois de
calcular os esforços necessários ao sucesso da empreitada estira o braço atirando
o copo para longe e, enquanto a Vénus gira nos calcanhares para apanhá-lo, num
ímpeto de gata assanhada, lança-se dolorosamente pelos lençóis da cama para
alcançar a arma de fogo.
Não se
aproxime: olhe que a mato, ameaça envolvendo o dedo em torno do
gatilho. A interlocutora ergue-se com indolência, sem mostrar intimidação, e
revirando os olhos num rito de displicência, retruca no ronronar doce da voz de
hetaira: Não seja tonta. Quero apenas mostrar-lhe uma coisa.
Poisando a tulipa sobre a cómoda, vai postar-se
por entre as pilastras que lhe sustêm o baldaquino da cama. Ali, da espuma do negligé cor de pêssego, botão que de
repente se arrepelasse à primavera, vê Laura branquejar-lhe a nudez do corpo
sólido, irradiando a brasa luminosa de muitos sóis, ele próprio ardendo como estrela
feroz, de uma beleza encandeante. Ao peito, porém, no lugar do coração, quebrando
a brancura das leitosas planícies, abre-se o olho torto de uma fratura, aberto
em «O» pela bala perfurante da frustração, gritando em carne-viva a escuridão
do seu mais secreto subterrâneo de mulher enganada.
Assim exposta aos olhos de outra
semelhante, rubras pingas de sangue vulcanizam uma procissão viscosa para o
exterior do peito, babando o limbo aguçado da grande racha, ressumbrando o
magma vermelho sobre o linóleo, enlaçando-se às serpentes unidimensionais da
cabeça de Medusa bordada a oiro na tapeçaria de Sidon.
Estas
lágrimas, parece-me, não são muito diferentes das suas.
Ao voltar a cobrir-se com as pétalas do
negligé, Laura pode ver-lhe por sobre
o ombro esquerdo, ao fundo, para lá da janela, a silhueta de uma Hera tentadora
avançando risonha sobre o marido, romã trincada às mãos, ateadora de fogos e de
corpos, e no pescoço dele, a vampiresca marca do seu estranho feiticeiro batôn de excessiva fêmea até à medula. Entende agora? inquiriu a Vénus.
Laura baixa o revólver, e ao fazê-lo, percebe
que a dor na nuca se lhe volta a dessangrar sobre as almofadas em nitescências
de lava. Dói. Dói muito. Como é das dores parturientes doer.
No regaço, o cano do revólver fumega
como se recém-disparado: é Laura que se deixa descair nos lençóis, com ar
pensativo |
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