SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 12 - "O VESTIDO VERDE-ÁGUA-DO-NILO"
SONHAR COM LADRÕES
por Carlos Marinho
Capítulo/Tela 12 – "O VESTIDO VERDE-ÁGUA-DO-NILO"
| O brusco despertar humedece-lhe os
olhos ainda piscos de sono. Do interstício das pestanas, limpa resquícios do
último sonho com a Vénus. Agora que desperta para o costumeiro taedium vitae, tudo é novamente cinza, tudo
são os desertos da sua insuficiente solidão.
Exploradora de esperanças,
inventariante de fracassos, à cata expectante de um ou outro oásis, Laura calça
aos pés as chinelas de ourelo azul, e arrasta-se pelas geografias infiniforme
da casa, abrindo persianas, indo do nada ao nada, obsceno mapa de despojos, arejando
as ausências da permanente indisponibilidade do marido, tudo limpando, tudo
aspirando, tudo brunindo, tudo ordenando, demorando melancolias sobre a secreta
fratura da Vénus-cascavel.
Não, Laura não tem por hábito brincar
aos Narcisos, mas algo a une, algo a sobrepõe – coincidente – a esta figura: a
mesma mordedura de sujeição, a dor do mesmo golpe de deslealdade, a simetria da
insuportável angústia da rejeição, a força transcendente na vivência do
patético e do heróico de cada dia, enquanto o marido prepara novo ataque sobre a
Hera das penas-de-pavão, caminhando por uma longa calçada de petulâncias.
Pára de espanador na mão, perturbada
pela sua indignação: algo a cansa em demasia para poder caminhar perpendicular
aos mortos, algo a consome e a impede de respirar com o corpo inteiro, algo a
extravia de seguir os pendões do mundo, algo em si é um exercício de lenço a
acenar despedidas. Quando amanhece o império dele, principia a sua noite – este
é o signo da sua servidão ao tirânico androcentrismo patriarcal: mera
incubadora, mera cuidadora, sem desejo, sem orgasmo, enojando diante do próprio
corpo e dos seus fluidos, propriedade masculina. E todo um súbito anseio por
liberdade se perverte em torrentes de raiva contra ele.
Arranha-se e arranca cabelos, tufão das
canelas para cima, sai aos jardins segurando a tesoura de poda e regressa a
casa deixando para trás um rasto de rosas decapitadas. À renda crua da toalha
de jantar o mesmo destino e, uma a uma, quebram as porcelanas chinesas contra a
parede.
Ela que maiusculara o frémito da comoção afetiva com
as mercês que se prestavam a uma conveniência, tentara encontrar no amor um
abrigo contra as inclemências do mundo e na fundura dos seus recessos mentais
sabia não conseguir indistinguir as pessoas que amava das de que necessitava. Até
àquele momento.
Ao diabo a travessa em forma de trevo!,
e os biscoitos quadrados e cor-de-rosa!, ao diabo os triângulos de queijo
amarelo!, e o convidado para jantar mais a sua postura enfatuada de burguês
presunçoso!, os Christofles atira-os em seta ao alvo que coloca à testa do
marido. Tudo pelo ar: o cobre da lata de pó-de-arroz, os ganchos de chapéu
atrás da porta, o oleado e o corrimão, o candeeiro de petróleo, os ornamentos,
as cortinas! Tudo tomba, tudo se
desmancha, tudo se corrói. As mãos têm-nas em sangue, tremendo, atarefadas a
destruir. Até que exausta, vencida, senta na senhorinha azul-da-Prússia,
esbugalhando a vista aturdida para os despojos-de-guerra da sua cólera.
Pouco a pouco, a cabeça descai-lhe para
o peito, dessalinando-se em pranto.
Experimenta agora toda a tristeza do
mundo.
Arquejando de cansaço, reza-lhe o corpo
a pulsional fala escondida dizendo que esta pausa não é do sono que dorme, mas de
uma secreta renúncia da carne à existência. Esta é a pena que sente: deixar
adormecer pelo cloral do medo, a mulher libertária e sexual que a vergonha a
outros olhos foi subterraneamente trocando por um sentimento de defeituosidade
má e indesejada e inferior. Essa Vénus também é Laura. E o tiro ao peito
disparara-o ela contra si.
Entre suspiros, esconde o rosto no
vazio das mãos em concha, e ao descobri-los, ergue o queixo para seguir um
percurso ascencional pelo pano persa que lhe recama os muros arredor,
detendo-se primeiro na mármore Carraro da
lareira, e depois na linha de perfumes do toucador em mogno. Há ruídos no closet: em fúria, no martelar torto dos
tacões scarpin, a Vénus vasculha
algo, cega de choro, por entre a gala dos vestidos fatais – quer a combinação
mais perfeita.
Laura ergue-se confusa, aproxima-se
timidamente e petrifica diante da agitação. Não
fique aí parada, impõe-se a Vénus, preciso
que me ajude. A interpelada perfila-se como de novo chamada à batalha,
limpando as lágrimas que lhe tremem pelas pestanas. Acha que o seu marido gostará deste? pergunta encostando ao corpo
um modelo Patou de decote coraciforme.
Laura pestaneja como se mal acordada: não pode ter a certeza absoluta de estar em posse das suas faculdades
mentais; retém a respiração e crava as unhas na palma da mão de forma a
convencer-se de que está acordada. Então?
insiste a Vénus com impaciência. Na
verdade, reconhece Laura de si para si mesma, não há qualquer proibição que me impeça.
Não, esse não, decide-se logo ali, precisa
de algo que lhe saliente mais o busto. Por algum abstruso motivo, a situação afigura-se-lhe agora perfeitamente
lógica e desprovida de problematização. Avança um passo para se juntar à Vénus,
medindo a olho de águia os pormenores de cada vestido, afadigando-se em ajudar
a sua estranha semelhante.
É quando repara no borrão de sangue que
uma lasca de porcelana quebrada lhe arrancara aos lábios, manchando-os de
vermelho-vivo. Fica-lhe bem, diz a
Vénus por cima do ombro, e condiz com
esse Lavanelli verde-água-do-Nilo. Experimente-o.
De início tímida, Laura não tardou a obedecer.
Diante da outra, sempre sentira uma presença maiúscula, excelsa, fora-deste-mundo;
a tonalidade ameaçadora que a sua aparência trazia a reboque desaparecia agora,
subitamente, para que se lhe substituísse o conforto da securização de uma
entidade professoral, educando-a na cátedra de ser mais mulher.
Sim,
fica-me bem – muito bem, pensa tentando não reprimir o
sorriso que se lhe insinua aos lábios. Só
não podemos ir assim, avaliou a Vénus olhando criticamente ao espelho para
as ondas revoltas da cabeleira negra. Devemos
passar no Antoinne’s antes de ir. Talvez você queira cortar um pouco ao
comprimento.
E aliando
o gesto à intenção, toma-lhe o braço com delicadeza, levando-a pela cidade,
amesenda-a primeiro na Claires para
saborearem a meias uma torta moka
polvilhada de cristais de açúcar cândi, trocando marcas de batôn e dicas de
dieta, e depois no salon de coiffure,
onde um homem muito parecido ao seu psicólogo as espera com atualizadas felizes
previsões horoscópicas |
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