SONHAR COM LADRÕES por Carlos Marinho | Capítulo/Tela 9 - "TODA A RAIVA DO MUNDO"


SONHAR COM LADRÕES
por Carlos Marinho

Capítulo/Tela 9 – "TODA A RAIVA DO MUNDO"

| Coruscante e concentrado, fixa-se-lhe o olhar na chama azul-amileno do fogão em exercício. Entre dedos, um cutelo grosso em ânsias de assassínio. Só aos poucos se permite acordar da abstração, sem conseguir precisar durante quanto tempo ali ficara ardendo a fogo lento, toda ela carne-viva, desejando decepar a messalina do pátio em Istambul. [Sobre a tábua de freixo, acaba de entremear o cor-de-rosa granuloso das fatias de um farto presunto curado na macieza láctea que o fio esventrara em diagonal à carne das trutas].

Poisa então os cotovelos na mesa e deita-se pela frescura do mármore amarelo num desmaio de trotamundos exangue. Folheia a revista aberta sobre o tampo, detém-se uma vez mais na página dos horóscopos: o minério das estrelas conhece-lhe a antiquíssima coleção circunstancial de falsas epifanias, conhece-lhe a travessia interrompia da mão curiosa no justo limbo da abertura de uma caixa de Pandora.

Em percurso descendente de olhos ávidos, relanceia a janela, avança a linha do portão rumo às sacadas da vivenda fronteira, e foca nas retinas a vizinha ao longe. Certamente Laura não tem por hábito brincar aos Narcisos – Laura não está habituada a brincar –, mas algo a une a esta figura: o mesmo avental de marechala dos tachos, a mesma arte de empenho judicial nos seus cuidados de enfermeira doméstica, a simetria de força transcendente na vivência do patético e do heróico de cada dia, acastelada em saltos para empurrar o carrinho de compras pela álea das promoções.

Enquanto a Vénus estira à sombra da roseira, baforando as suas preocupações de um qualquer Marlboro de futilidades, a puta revolucionária de que o psicólogo falara, a puta que os homens querem domesticada no silêncio, a hetaira que Laura aprendera a reprimir à sombra de vetustos retratos sem graça, sem barulho e sem polémica, pela gravidade das ordenações matrimoniais, assexuada e passiva, para a ninguém desagradar, para a todos comprazer. Sacode as palavras do psicólogo como a uma memória desagradável.

De cutelo na mão, sobe as escadas e vai sentar-se ao espelho églomisé da vanity: lança a polpa da ponta dos dedos para esticar os pés-de-galinha que lhe sulcam as bordas dos olhos, volteia o rosto para analisá-lo sob diferentes ângulos. Quer para si o corpo da Vénus Eucarite, as curvas e a veloutine, a medusa da cabeleira negra, o batôn extravagante, o Schiaparelli caro, o seu império sobre os homens, a capacidade vampiresca do poder, a concentração do fémino magnetismo.

Ao lume, as trutas estão quase prontas. Na tigela esmaltada deve reunir quatro colheres de óleo, uma de mostarda e outra de ervas aromáticas. Em vez disso, embebe uma borla de algodão no cold cream perfumado a frangipana, e aplica ao rosto toda uma gala de cosméticos: muito rímel, muito batôn, a túnica negra em substituição do Schiaparelli, e sai à rua, toda exuberância aos gritos, um escândalo de desejo, ao assalto histriónico das artérias principais, para que a multidão a note, para que lhe aplaudam com fascínio a beleza rompe e rasga.

E no seu tresvario narcísico vai dançando rua fora, partout, posando por teatros, invadindo museus, rindo alto, de feliz. Também os outros riem e cochicham, mas a expressão jocosa que apresentam levam-na à dúvida das intenções, e é face à montra de um talho que por fim pausa para aí perceber o exagero grotesco da maquilhagem que a cobre.

Num choque de horror, leva os dedos à cara e traz à polpa das pontas um óleo de rastos de mostarda e de ervas aromáticas, o batôn e o rímel esborratados ambos num caótico Picasso de vexame e de desonra.

Prestes a sucumbir a um acesso de choro, larga a fugir por entre as ruas, dobrando esquinas para longe.

De volta a casa, limpando as borras do make-up com os refolhos do avental, avança aos soluços para a cozinha, retira os sapatos, não tem para onde escapar, sobe ao fogão e desaparece para dentro do tacho de trutas |

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